Geólogos fizeram o mapa de cadeias montanhosas, desertos e florestas.
Astrónomos desbravaram o céu. Mas os oceanos do planeta continuam em grande
parte inexplorados. Há quem diga que conhecemos melhor a Lua ou até mesmo Marte
do que nosso próprio fundo do mar.
O terreno marinho desempenha um papel fundamental no
ecossistema. Relevos e vales submersos determinam padrões climáticos e
correntes marítimas; a topografia do oceano influencia a pesca, que
alimenta milhões de pessoas; quilómetros de cabos subaquáticos ligam biliões
de indivíduos à internet; montes submarinos oferecem protecção contra ameaças
costeiras, como possíveis furacões ou tsunamis, e podem até dar pistas sobre a
movimentação pré-histórica dos continentes ao sul do planeta.
Em 2017, uma equipa internacional formada por especialistas
de diversas partes do mundo deu o pontapé inicial para elaborar um mapa
completo de todos os oceanos, como parte do projecto sem fins lucrativos Gráfico
Barométrico Geral dos Oceanos (Gebco, na sigla em inglês).
Enquanto os primeiros oceanógrafos se esforçavam para
vasculhar o fundo dos oceanos de nó (1 milha náutica – 1,852 km – por hora) em
nó, os avanços recentes na tecnologia sonar permitem que uma única embarcação
forneça milhares de quilómetros quadrados de mapas de alta resolução durante
uma única expedição.
Mas as tão esperadas descobertas subaquáticas não são apenas
de interesse dos cartógrafos ou investigadores marinhos. Muito abaixo da
superfície do oceano há um tesouro enterrado: metais preciosos, elementos de
terras-raras, petróleo e diamantes – riquezas que até hoje são inacessíveis,
inclusive para os exploradores mais obstinados.
Alguns ambientalistas temem que a criação do mapa permita às
indústrias extrativas lucrar com esses recursos naturais, colocando em risco
habitats marinhos e comunidades costeiras.
Um mapa batimétrico global – isto é, um levantamento
completo do fundo do oceano - certamente oferecerá uma compreensão melhor do
nosso Planeta Azul, mas também pode nos levar a um universo outrora reservado à
ficção científica: robôs submarinos, vulcões subaquáticos, joias marinhas,
corais com propriedades farmacêuticas, plumas de sedimentos tóxicos e
empreendimentos oceânicos desprovidos de seres humanos ou embarcações.
A questão é: uma vez que o mapa estiver pronto, será que ele
vai ser usado como uma ferramenta em prol da conservação e do gerenciamento
responsável? Ou como um "mapa do tesouro", funcionando como um guia
para exploração e extração?
Apenas 15% do oceano do planeta é mapeado. Basta acessar o
Google Earth e dar um zoom no meio do Pacífico, por exemplo. Você vai encontrar
uma representação do fundo do mar com base na barometria por satélite e
derivada da gravidade: de baixa resolução, indirecta e muitas vezes imprecisa.
Considerando que mapeamos o Sistema Solar e o genoma humano, é surpreendente
que não haja nenhum levantamento do fundo do mar. Mas a razão é simples: os
oceanos são vastos, profundos e praticamente impenetráveis – a água fica
literalmente no caminho dos investigadores.
Durante séculos, mapear as profundezas do oceano significava
enfrentar o alto mar, pendurar linhas de prumo na lateral do navio (para
determinar a profundidade) e depois traçar as descobertas essenciais em mapas
cartográficos. Os marinheiros transformaram os seus levantamentos em mapas já no
século 16, mas naquela época não existiam padrões internacionais para
terminologias ou escalas, o que significa que os primeiros mapas não eram
apenas ferramentas rudimentares de navegação, mas também confusos e contraditórios.
Só a partir do virar do século 20, época marcada pelo
crescente interesse no mundo natural, que um grupo de geógrafos se reuniu sob a
liderança do príncipe Albert 1º, de Mónaco, para criar os primeiros gráficos
internacionais do oceano - que, mais tarde, dariam origem ao Gebco. O príncipe
estava fascinado pela relativamente nova ciência da oceanografia e encomendou
quatro iates de pesquisa para explorar o Mediterrâneo.
Mais de 100 anos depois, o Gebco e a Nippon Foundation
anunciaram formalmente o lançamento do Seabed 2030, projecto colaborativo que
tem como objectivo mapear todo o fundo do mar até 2030. A ideia é usar dados
recolhidos de embarcações ao redor do mundo - incluindo levantamentos das
primeiras expedições.
Os navios modernos, como os usados na empreitada, são
equipados actualmente com barometria multifeixe – sistema sonar que emite ondas
sonoras em forma de leque sob o casco da embarcação. Cada feixe sonar mede o
tempo que leva para um sinal atingir o fundo do mar e retornar à superfície,
calculando assim a profundidade da água, que pode ser marcada como uma
coordenada em uma matriz de dados barométricos.
"Os múltiplos feixes ampliam a área do mapa e nos
oferecem uma cobertura maior", explica Vicki Ferrini, presidente do
subcomite do Gebco para mapeamento submarino.
A maioria dos navios já conta com a tecnologia sonar para
identificar obstáculos e navegar, mas as embarcações com multifeixes aumentam
consideravelmente a área do fundo do mar que os pesquisadores podem rastrear.
"É como aparar a relva com um cortador motorizado em
vez de usar um equipamento manual", compara Ferrini.
Parte do problema, no entanto, é que as "vias"
marítimas são muito parecidas com as rodovias: certas rotas possuem tráfego
intenso, enquanto outros sequer têm rotas. Ou seja, grandes extensões do oceano
não contam com um fluxo regular de embarcações. Um navio que faz a rota Havaí –
Japão, por exemplo, oferece dados valiosos sobre o trajecto, mas missões planeadas
para águas mais remotas são igualmente importantes.
"Um levantamento barométrico feito com múltiplos feixes
modernos vai muito além de apenas dirigir um navio ao redor do oceano",
diz o contra-almirante Shepard Smith, Director do Escritório de Pesquisa
Costeira da Administração Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOAA, em
inglês), que contribui para o Seabed 2030.
"Os dados do sonar são valiosos, mas particularmente em
áreas onde não temos nada."
"No Pacífico ou no Ártico, por exemplo, linhas de
rastreamento individuais podem ser bastante úteis para entender melhor as áreas
mal mapeadas", acrescenta.
O Gebco espera mitigar esse problema incentivando navios de
carga, barcos de pesca e embarcações de lazer a participarem do projecto,
transmitindo os seus dados em tempo real e transformando o mapa submarino
efectivamente num crowdsourcing (conteúdo colaborativo, criado pelos
usuários).
A organização também oferece uma espécie de "livro de
receitas": um manual de referências técnicas sobre a construção de grades
batimétricas, que pode ajudar os países em desenvolvimento a usar os
conhecimentos compartilhados.
Os colaboradores também são convidados a sugerir nomes para
vários elementos subaquáticos - colinas, cumes, recifes, caldeiras e valas,
para citar alguns - enviando uma carta à Organização Hidrográfica
Internacional, em Mónaco.
O mapa vigente está baseado no Data Center Oceanográfico
Britânico, no Reino Unido. E pode ser acessado por meio de um aplicativo
marítimo para o sistema operacional iOS.
"Todo mundo – de investigadores a formuladores de
políticas públicas e o público em geral – pode acessar os dados actuais",
observa Helen Snaith, líder do Centro Global do SeaBed 2030.
Talvez nenhuma expedição moderna revele a complexidade do
mapeamento dos oceanos em águas profundas de forma mais impressionante que a
busca pelo avião da Malaysian Airlines (MH370), desaparecido desde 2014. As
investigações indicam que a aeronave, que seguia em direcção a Pequim, caiu numa área remota do Oceano Índico. A região era tão mal mapeada que as equipas de resgate tiveram que fazer um levantamento básico da área de busca antes de
elaborar um mapa mais preciso com resolução suficiente para detectar os
destroços.
E, na verdade, a região era profunda demais para ser
explorada com o mapeamento baseado em navios. Em águas mais rasas, rebocadores
equipados com sonar são puxados por uma embarcação tripulada, mas a
profundidade do Oceano Índico, o clima de monções e as fortes correntes
marítimas tornam quase impossível a navegação de veículos rebocados. Então, em
vez disso, os peritos enviaram uma frota de veículos subaquáticos autónomos
(AUVs, na sigla em inglês).
Embora a robótica submarina ainda esteja a avançar, as
pesquisas em águas profundas dependem cada vez mais de submarinos para
vasculhar o leito marinho em busca de um mapeamento mais detalhado.
"Os AUVs apresentam muitas vantagens", diz James
Bellingham, diretor do Instituto Woods Hole de Robótica Marinha, em
Massachusetts, nos EUA.
"Eles são mais rápidos, fornecem inspecções do fundo do
mar em alta resolução, incluindo avaliação de risco, reduzem os custos iniciais
de capital e proporcionam maior acesso ao oceano", explica.
Um sistema barométrico de múltiplos-feixes apropriado custa
muitos milhões de dólares e requer operadores treinados para classificar os
dados, uma vez que os navios, por definição, flutuam na superfície do oceano –
não abaixo dele.
Os AUVs, por outro lado, não são tão caros e são idealmente
adequados para grandes extensões de águas remotas e abertas. Investigadores
estão projectando actualmente novos modelos que podem ser lançados da terra e
precisam ser alimentados apenas por baterias. É claro que esses activos também
apresentam riscos: as baterias precisam ser recarregadas, os sistemas de
navegação devem ser monitorizados a partir de navios próximos e um AUV avariado
deve ser levado de volta ao porto para manutenção.
Segundo Bellingham, "no futuro, um veículo autónomo de
superfície poderá rebocar veículos subaquáticos", eliminando assim os
seres humanos de todos os aspectos do mapeamento no mar.
O Oceano Índico é conhecido, em sânscrito, como Ratnakara,
que seria "mina de pedras preciosas". O nome é de facto profético:
entre as montanhas e vales submarinos deste longínquo oceano estão escondidos
grandes reservatórios de recursos naturais, incluindo ligas metálicas raras,
petróleo, fontes hidrotermais e até diamantes. Esse tesouro subaquático já está
no radar comercial - e um punhado de exploradores começou a fazer seus próprios
mapas de alta resolução do fundo do mar.
Segundo Ferrini, essas informações podem ser valiosas para
os pesquisadores. E as empresas petrolíferas, mineradoras e de análises
sísmicas podem decidir partilhar dados reduzidos ou com resolução mais baixa
para o mapa do Gebco, protegendo os seus interesses comerciais e acrescentando
informações importantes ao projecto de 2030.
Enquanto a mineração de ouro, estanho e diamantes em águas
rasas é um empreendimento realizado há décadas, a mineração comercial em águas
profundas é uma indústria nova. E o seu impacto ambiental ainda é desconhecido.
Os cientistas prevêem, entre outras coisas, a degradação do habitat natural,
com recuperação lenta e incerta, vazamento químico nos transportes e extinção
de espécies.
Um porta-voz da De Beers afirmou, por sua vez, que a empresa
"não faz mineração em áreas consideradas com alta diversidade de vida
marinha".
"A recuperação do leito marinho (após a mineração)
ocorre naturalmente durante um determinado tempo e é auxiliada pelo sedimento
que nós devolvemos para o fundo do mar", acrescentou.
Ainda assim, os incentivos económicos do sector
frequentemente superam as preocupações com segurança ambiental. Metais de
terras raras encontrados em águas profundas são usados em tudo – de telefones
celulares e DVDs a baterias recarregáveis, ímans, memória de computador e
iluminação fluorescente. E, como as reservas terrestres de petróleo estão
esgotando rapidamente, a exploração de poços em águas profundas torna-se uma
perspectiva cada vez mais tentadora.
"É uma corrida", diz Bellingham.
"Uma corrida para se chegar a uma compreensão básica do
nosso oceano, antes de alterá-lo dramaticamente. Já perdemos essa corrida no
Ártico: a vida marinha que vivia no gelo não sobrevive mais", ressalta.
Além dos efeitos óbvios da mudança climática, parte das
nossas águas também se tornou vítima da "urbanização oceânica": o
fundo do mar está repleto de oleodutos, cabos submarinos de fibra óptica e
espaços para aquicultura – o que sugere que estamos ansiosos para explorar as nossas águas antes mesmo de conhecê-las adequadamente.
Com ou sem mapa, as leis marítimas internacionais restringem
actualmente a mineração em águas profundas a mais de 200 milhas da costa -
distância a partir da qual os países não têm mais jurisdição sobre suas águas.
A Convenção das Nações Unidas (ONU) sobre o Direito do Mar é o arcabouço
jurídico que define os direitos e deveres dos Estados no uso e exploração dos
oceanos.
O Artigo 76 da Convenção refere-se repetidamente à
"plataforma continental", extensões de terra submersas que terminam
nos "abismos" oceânicos. A lei estabelece que a vida marinha deve ser
protegida e que a receita proveniente de qualquer empreendimento de mineração
nesta região deve ser partilhada com a comunidade internacional.
O oceano profundo é o maior e menos compreendido habitat de
vida animal e vegetal na Terra. Dois terços do nosso planeta correspondem a um
paraíso marinho de beleza e mistério. São regiões caracterizadas pela alta
pressão, baixas temperaturas e escuridão quase constante. Mas abrigam uma
variedade de criaturas surpreendentes - o polvo-dumbo, a
lula-vampira-do-inferno, o tubarão-fantasma, caranguejos-aranha, corais e
enguias eléctricas - organismos fora do comum que apresentam adaptações evolutivas
impressionantes.
Embora esses habitantes subaquáticos tenham mudado pouco
desde a era dos dinossauros, eles não são muito resistentes. Demoram a se
reproduzir e são altamente sensíveis a distúrbios.
Um atlas submarino internacional requer a cooperação de
diferentes partes que têm objectivos distintos (e muitas vezes opostos): de
autoridades do governo e oceanógrafos a operadores de submarinos militares,
pescadores e mineradores offshore. Uma vez que as informações barométricas
detalhadas forem divulgadas, medidas preventivas devem ser tomadas para
proteger tanto o mapa quanto a paisagem que ele descreve.
"Um mapa de alta resolução é um investimento na gestão
responsável do fundo do mar nos próximos séculos", diz o contra-almirante
Smith.
De fato, a preservação dos oceanos depende de uma
administração consciente - especialmente quando nos voltamos para suas
profundezas em busca de recursos naturais que não conseguimos mais encontrar em
terra.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site
BBC Future.
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