Apanham-se por cá, mas vão quase todos para Espanha. A excepção é a Ericeira, onde há a tradição de comer ouriços-do-mar, ou melhor, as suas “ovas”. Agora há projectos de investigação que estudam as ovas destes animais do ponto de vista económico e ambiental.
A
espécie de ouriços-do-mar mais abundante da costa portuguesa, e uma
das principais da Europa, está a ser estudada de forma aprofundada
desde 2016. Investigadores da Universidade do Porto pensam que as
“ovas” do Paracentrotus
lividus, abundante
no Norte do país, podem ser uma mais-valia para o mercado português.
Para tal, “afinaram” as melhores dietas para criar estes animais
em aquacultura, uma vez que acreditam que, assim, podem também
contribuir para a preservação das populações naturais desta
espécie.
Ao
longo de um ano, a equipa do Centro Interdisciplinar de Investigação
Marinha e Ambiental (Ciimar) da Universidade do Porto estudou ao
pormenor duas populações selvagens de ouriços-do-mar, nas praias
Norte e de Carreço, em Viana do Castelo. O que se pretendia era
avaliar o melhor período de captura destes animais e a qualidade das
suas gónadas (as “ovas”) para consumo humano – em termos de
valor económico, nutricional e características sensoriais (como a
cor, o sabor, a textura e o cheiro).
Este
parente próximo das estrelas-do-mar e dos pepinos-do-mar (também
cobertos de espinhos e, por isso, equinodermes) gosta de habitats
rochosos. A sua boca assemelha-se a uma garra, com cinco lâminas
(parecidas com dentes) viradas para dentro e vai deixando marcas nas
rochas, à medida que devora tapetes de algas.
Com
o estudo dos ouriços-do-mar selvagens concluído, os investigadores
puderam passar para a segunda etapa da investigação: a formulação
de dietas específicas para a produção destes invertebrados
marinhos em aquacultura. “Actualmente, não há em Portugal – e
são poucas no mundo – as dietas específicas para a produção de
ouriços-do-mar em cativeiro, que garantam gónadas de boa qualidade
para o consumidor final”, explica a bióloga Luísa Valente, do
Ciimar e a coordenadora do estudo.
Na
Europa, a bióloga diz ter apenas conhecimento de se estar a apostar
na aquacultura de ouriços-do-mar na Noruega, na Escócia e na
Islândia. Porém, o facto de as condições ambientais e a
temperatura da água em Portugal serem distintas das daqueles países
impossibilita que as ementas sejam directamente replicadas. Além
disso, estão a ser testados diferentes menus, de maneira que ainda
não há uma ração comercial capaz de dar “confiança suficiente”
aos aquacultores, para apostarem a sério neste negócio.
Em
Portugal, este projecto do Ciimar – o Inseafood – é pioneiro
para a produção de ouriços-do-mar em aquacultura. Conta com 4,2
milhões de euros, atribuídos em 2016 pelo programa Norte 2020 até
2018, e quer apostar em novas técnicas de exploração sustentável
de espécies economicamente relevantes para a aquacultura portuguesa.
Ao lado das algas, dos robalos e das ostras, estão os
ouriços-do-mar. “É algo inovador porque olha para a espécie de
ouriços-do-mar mais abundante da nossa costa – o Paracentrotus
lividus –
com uma clara vocação para o mercado nacional”, sublinha Luísa
Valente.
Sem
ser na Ericeira,
o consumo de gónadas de ouriços-do-mar não é uma tradição
portuguesa e os animais capturados são, na sua maioria, vendidos a
comerciantes de Espanha, onde são uma iguaria bastante apreciada. O
certo é que este produto de elevado valor nutricional e económico
parece encontrar as condições ideais para ser produzido em
cativeiro nas águas frias do Norte de Portugal.
A
alimentação ao certo desta espécie de ouriços-do-mar ainda requer
mais estudos. “Temos de perceber quais são as necessidades
nutricionais destes animais. Até agora, testaram-se rações com
matérias-primas diferentes (algas e outras fontes proteicas
vegetais) e com níveis de proteínas e gordura distintos”, informa
Luísa Valente. Após vários ensaios experimentais, ficou claro que,
tal como nós somos o que comemos, também a alimentação dos
ouriços-do-mar os influencia directamente.
Geralmente,
as gónadas dos machos são mais esbranquiçadas e as das fêmeas
mais alaranjadas. No entanto, “a cor depende essencialmente
do tipo de pigmentos das algas utilizadas nas suas dietas”, explica
a bióloga.
A
equipa do Ciimar ficou satisfeita com os resultados obtidos até
agora da investigação. Os resultados demonstraram que estas dietas
são capazes de potenciar um bom crescimento das gónadas destes
animais criados em cativeiro, com uma qualidade muito aproximada da
dos selvagens. “Estamos num bom caminho para viabilizar o cultivo
destes animais em cativeiro”, diz a bióloga, acrescentando que
estão em preparação dois artigos científicos.
Além
de se tentar superar o carácter sazonal da captura destes animais,
Luísa Valente destaca ainda “o elevado potencial económico das
gónadas”, do qual diz que o país pode retirar muito mais partido.
Gónadas gourmet
É
debaixo da carapaça espinhosa dos ouriços-do-mar que encontramos a
sua parte comestível, que não são mais do que os seus órgãos
reprodutores (ovários e testículos). Referimo-nos, concretamente,
às cinco “línguas” deste invertebrado marinho que representam
apenas 20% do seu corpo.
O
valor gastronómico deste “caviar do mar” já é
internacionalmente reconhecido pela cozinha gourmet e
pode exceder os 58 euros por quilo. Actualmente, o Chile é
responsável por cerca de 60% das capturas globais (que rondavam as
65 mil toneladas em 2010), mas em cada 100 consumidores mais de 80
são japoneses. No mundo, já se comem gónadas frescas, salgadas,
congeladas ou cozinhadas.
Ainda
que em 2014 se tenham capturado 14 toneladas de ouriços-do-mar em
Portugal, Luísa Valente diz que “o consumo nacional de gónadas é
reduzido”, acabando por serem, muitas vezes, exportadas. “Reter e
processar este produto para gerar valor acrescentado no mercado
interno” é considerado pela equipa como uma necessidade e a
degustação do Paracentrotus
lividus produzido
em cativeiro poderá ser uma opção.
E
se o ponto de partida deste projecto foram as praias de Viana do
Castelo e a primeira paragem a biologia marinha, a segunda foi a
gastronomia. Num almoço informal, três chefs de
cozinha com uma estrela Michelin provaram gónadas selvagens de
diferentes zonas do país – de Viana do Castelo, da Ericeira e do
Algarve.
O
objectivo era que os chefs André
Silva, Catarina Correia e Ricardo Costa ajudassem os investigadores
do Ciimar a perceber o que teria de ser aprimorado nas dietas dos
ouriços-do-mar, para se ir ao encontro das preferências dos
clientes nos restaurantes.
“O
sabor é muito especial e único, não se compara com mais nada. No
estado natural tem um sabor intenso a mar e é delicioso!”,
descreve Luísa Valente. “Pelo que pude perceber durante as provas,
o ideal será ter na mesa uma mistura de machos e fêmeas, para o
sabor ser mais equilibrado.” Além disso, averiguar se havia
uma variação do sabor das gónadas consoante a origem geográfica
do ouriço-do-mar era o outro propósito. “Os resultados ainda
estão a ser analisados, mas todos os ouriços têm características
semelhantes.”
Uma aposta nas conservas?
Conseguir
que os animais cresçam saudáveis e que produzam gónadas com a cor
e o sabor desejados pelo consumidor final é a meta, mas Luísa
Valente também se pronuncia relativamente à aquacultura como uma
alternativa sustentável ao consumo de peixe. “A produção de
animais de baixo nível trófico pode ser uma solução”, afirma a
investigadora, referindo-se a animais que estão na base da cadeia
alimentar e não no topo.
Ao
longo dos anos, não só a captura mundial tem excedido a capacidade
de regeneração das populações naturais, como não se tem apostado
na investigação do Paracentrotus
lividus.
Quem o diz é Susana Ferreira, bióloga da Escola Superior de Turismo
e Tecnologia do Mar do Instituto Politécnico de Leiria.
“Não
temos nem dados de quantidades nem da distribuição geográfica das
populações de ouriços em Portugal e no mundo. Só sabemos que há
menos ouriços-do-mar porque, empiricamente, se encontram menos”,
refere Susana Ferreira. “Estudos rigorosos precisam de ter em conta
possíveis diferenças interanuais, por isso levam muito tempo e
tornam-se bastante dispendiosos.”
Já
são vários os pescadores portugueses que vão à procura de
ouriços-do-mar entre Outubro e Abril – o período da desova. A
captura está regulamentada por lei desde o início dos anos 90 e, no
âmbito da pesca lúdica, qualquer cidadão pode apanhar até dois
quilos diários para consumo próprio. Caso queira comercializar os
ouriços-do-mar, terá de ter uma licença e não pode exceder os 50
quilos por dia, de acordo com as normas
aprovadas em 2010.
Contudo,
a clandestinidade não deixa de ser uma opção apelativa quando há
a hipótese da comercialização a preços elevados do outro lado da
fronteira. Este ano já foram feitas duas operações de
fiscalização: numa foram apreendidos 124
quilos(com
valor comercial de quase 500 euros) pela Polícia Marítima de Viana
do Castelo e noutra confiscados 100
quilos pela
Polícia Marítima de Caminha. As multas vão dos 250 aos 50 mil
euros.
“Sendo
uma iguaria muito procurada no mercado espanhol, os ouriços-do-mar
têm um valor comercial considerável, sendo vendidos pelos
apanhadores a comerciantes espanhóis a quatro euros o quilo”,
adiantava na altura, em comunicado, o comando local da Polícia
Marítima de Viana do Castelo. “A quantidade apreendida traduz-se
num valor, na primeira venda no mercado, de 496 euros.”
Mas
os ouriços-do-mar não são caso isolado, uma vez que “outros
invertebrados como as lapas, as navalheiras ou os lavagantes também
estão em perigo e, por não serem peixes, é-lhes dada pouca
atenção”, nota ainda Susana Ferreira, que participou nas Jornadas
Técnicas do Festival do Ouriço-do-mar, na Ericeira, organizadas em
Abril pelo Mare – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente. Nessas
jornadas, o Mare apresentou outros dois projectos sobre
o Paracentrotus
lividus,
que começam este ano. Um é o Ouriceira Aqua, que pretende criar as
bases para produzir a espécie na Ericeira e em Portugal; o outro é
o Ouriceira Mar, para estudar a ecologia e explorar os ouriços-do-mar
na Ericeira e regiões vizinhas.
Quanto
ao Inseafood, já está a dar origem a outro projecto. “Dado o
elevado interesse dos ouriços-do-mar, queremos aprofundar o seu
estudo e, ainda este ano, começar o Valeour”, adianta Luísa
Valente, acrescentando que vai ser financiado em cerca de 700 mil
euros, durante três anos, pelo programa Mar 2020. “Irá testar a
melhor forma de fazer conservas, preservando o sabor das gónadas, em
articulação com a indústria conserveira portuguesa.”
O
projecto vai ter a colaboração das empresas Conservas Portugal
Norte, da RiaSearch (de aquacultura) e, ainda, da Sense Test (de
análise sensorial). Além das gónadas, procurar-se-á valorizar
outras partes dos ouriços-do-mar, como compostos bioactivos
potencialmente benéficos para a saúde humana.
Resta
saber se, após os vários projectos de investigação científica,
os ouriços-do-mar vão chegar à mesa dos portugueses.
Fonte: Público
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