sexta-feira, 25 de maio de 2018

O que nos diz o caboz sobre os oceanos mais ácidos do futuro?

Equipa portuguesa testou em laboratório os efeitos da acidificação dos oceanos – devido ao excesso de dióxido de carbono na atmosfera – no caboz-de-duas-pintas. Verificou que se reproduz mais, mas não ainda se sabe se haverá consequências negativas na vida adulta desta espécie.


O caboz-de-duas-pintas é um peixe que se reproduz de forma peculiar. Durante a sua curta vida, tem só uma época de reprodução: as fêmeas depositam os ovos no ninho mas são os machos que depois cuidam deles. Contudo, a acidificação dos oceanos pode afectar a reprodução do caboz-de-duas-pintas. Uma equipa de cientistas portugueses estudou vários exemplares desta espécie em laboratório e concluiu que, num ambiente acidificado, se reproduziram duas vezes mais do que os que estavam num ambiente sem esse efeito. As larvas também nasceram mais pequenas.

 O caboz-de-duas-pintas (Gobiusculus flavescens) distribui-se nas zonas costeiras desde Portugal até à Noruega. Como precisa de um lugar para se esconder, em Portugal encontramo-lo em recifes rochosos e, nos países nórdicos, em florestas de kelp. “É uma espécie que forma cardumes e precisa de algum material estruturado para se abrigar e proteger dos predadores”, explica Ana Faria, bióloga marinha do Mare – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, ISPA – Instituto Universitário, em Lisboa, e principal autora do artigo científico publicado na revista Marine Environmental Research.

Mede entre três e cinco centímetros já no estado adulto. “Tem características muito interessantes”, avisa Ana Faria. Só vive um ano a um ano e meio e tem uma única época de reprodução entre Março e Julho na costa portuguesa. Nesse período, reproduz-se várias vezes.

É em ninhos nas fendas das rochas ou nas conchas vazias de bivalves que tudo acontece. “No início da época de reprodução, o macho seduz as fêmeas com cortes nupciais. E, geralmente, os machos maiores são os mais atractivos para as fêmeas”, conta a bióloga. A fêmea entra no ninho, desova e vai-se embora. O macho permanece, fertiliza os ovos (que podem ser de várias fêmeas, que podem reproduzir-se muitas vezes) e cuida deles no período embrionário durante dez a 15 dias nas águas portuguesas. “O macho pode passar a época de reprodução no ninho a cuidar dos ovos.”

É fácil distinguir os machos das fêmeas. Afinal, esta é uma espécie com dimorfismo sexual. Na época de reprodução, as fêmeas têm uma barriga grande e laranja, que indica que têm ovos. Os machos têm duas pintas – uma na zona caudal e outra na barbatana peitoral –, que dão o nome à espécie.


O caboz-de-duas-pintas é também usado como modelo laboratorial para estudar a selecção sexual. “No início da época de reprodução, aparentemente são os machos que são mais selectivos na escolha da fêmea. Mas se há machos que vão morrendo ao longo dessa reprodução, a uma dada altura há mais fêmeas e são elas que são mais selectivas. Há aqui uma inversão da escolha sexual”, explica a bióloga, acrescentando que este é um comportamento descrito nos países nórdicos mas que nunca foi estudado em Portugal.

Ana Faria e a sua equipa estudaram o efeito da acidificação dos oceanos nesta espécie. A acidificação ocorre quando o excesso de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera é absorvido pela água do mar, causando algumas reacções químicas, como a redução do pH e o aumento da pressão de CO2 na água.
Actualmente, o pH médio oceânico é de cerca de 8,1 e a pressão de CO2 de cerca de 400 microatmosferas (unidade de medida da concentração de CO2). Já na costa, onde está o caboz-de-duas-pintas, esses valores serão mais elevados, pois há mais influência das actividades humanas. “Na costa portuguesa, em particular junto ao [rio] Tejo e Sado, existem valores ‘normais’ que variam entre 500 e 600 microatmosferas”, indica a bióloga marinha. “Em condições de upwelling [fenómeno de afloramento costeiro que consiste na subida de águas subsuperficiais] na nossa costa, já houve registos de 1800 microatmosferas.”

Portanto, quis desvendar-se o que pode acontecer aos peixes que vivem nessas condições. “Os peixes têm uma capacidade muito grande de regular as trocas iónicas e de se manterem em equilíbrio. No entanto, regular e manter o equilíbrio exige mais energia da sua parte, o que pode prejudicar outros processos, como a reprodução e as taxas de crescimento.”

Peixe-palhaço perto do perigo

Para estudar o caboz-de-duas-pintas, a equipa capturou 18 machos e 18 fêmeas no Parque Marinho da Arrábida antes do início da época de reprodução. Depois, simulou num ambiente acidificado – com um pH de 7,6 e uma pressão de CO2 de 2300 microatmosferas – previsto para o final do século XXI, sem esquecer os fenómenos de upwelling. Simulou-se ainda as condições actuais na costa portuguesa. E, depois, os peixes reproduziram-se.

Observou-se então que no ambiente acidificado o caboz-de-duas-pintas se reproduziu duas vezes mais do que no ambiente sem esse efeito. “As fêmeas colocavam, em média, cerca de 40% mais ovos do que os peixes em ambiente de controlo”, diz Ana Faria. Quanto ao tamanho dos ovos, não houve diferenças, mas as larvas do ambiente acidificado eram significativamente mais pequenas.

E quanto ao tamanho dos peixes na vida adulta? “Não sabemos, porque o trabalho terminou com as larvas à nascença”, responde a bióloga. Aparentemente, o aumento da reprodução podia ser uma boa notícia. Mas ainda não se sabe quais as consequências. “Parece estar a haver uma troca de investimento: as fêmeas estão a colocar mais ovos e a reproduzirem-se mais vezes, mas depois as larvas nascem mais pequenas. Embora não tenhamos a certeza se isso é bom ou mau, a verdade é que há uma troca de investimento que pode ter consequências. Perceber isso é o passo seguinte.”

A partir deste ano, Ana Faria vai tentar perceber se o tamanho mais pequeno do caboz-de-duas-pintas à nascença afecta as taxas de crescimento e sobrevivência ou se há algum mecanismo compensatório. Também vai estudar se os progenitores dessa espécie expostos a agentes de stress transmitem à descendência características que lhes permitam sobreviver num meio mais agressivo.

Os efeitos da acidificação dos oceanos têm sido estudados sobretudo nos recifes tropicais. “De forma geral, o que os trabalhos parecem indicar é que acidificação vai ter implicações nos comportamentos de decisão, seja de lateralização ou na escolha de odores, de predadores, habitats ou sons”, resume Ana Faria. Por exemplo, o peixe-palhaço sob o efeito de um oceano mais acidificado é atraído pelo odor dos predadores e expõe-se mais a esse perigo. Já o peixe-rei pode ter problemas com a lateralização, que é importante, por exemplo, na fuga ao predador.
Outros estudos em larvas do peixe-rei e do peixe-palhaço indicam que com a acidificação há um desequilíbrio num dos receptores do GABA, principal neurotransmissor inibidor no sistema nervoso central. O resultado é uma alteração do estado inibitório para excitatório, o que afecta os comportamentos dos peixes. Ainda não se sabe se a acidificação tem influência no mesmo receptor do caboz-de-duas-pintas. Ana Faria espera revelar em breve mais novidades sobre os efeitos de um oceano mais ácido nos peixes.

Fonte: Público

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