Equipa portuguesa do centro de engenharia aeronáutica do CeiiA participou na construção de uma câmara subaquática não invasiva que andou à boleia de tubarões e jamantas nos Açores. Este “mergulho” é um dos episódios de um documentário da BBC que se estreou na passada quinta-feira.
Uma equipa de investigadores do centro de engenharia
aeronáutica do CeiiA (Centro de Excelência para a Inovação da Indústria
Automóvel), em Matosinhos, tornou possível a experiência de passar várias horas
lado a lado com tubarões e jamantas. Basta enlaçar uma câmara subaquática no
seu dorso e esperar que as imagens gravadas, com o que viram e fizeram, venham
à superfície. Na passada quinta-feira, a BBC One apresentou o episódio que nos
leva à boleia de tubarões e jamantas dos Açores.
É um dispositivo não invasivo que permite mergulhar com
grandes animais marinhos e espreitar o seu mundo sem interferências. O pequeno
torpedo vermelho – recheado com uma câmara de filmar na ponta de um cabo que é
enlaçado no dorso dos animais – não só parece não os incomodar, como também
dispensa a intrusiva presença humana que pode alterar o seu comportamento.
Trata-se de um equipamento que o grupo de engenheiros da área de mar e espaço
do CeiiA, liderado por Tiago Rebelo, ajudou a desenvolver para biólogos e
outros investigadores do Instituto do Mar (Imar), nos Açores. Essa era a missão
original dos dispositivos. Porém, o projecto foi temporariamente desviado para
um documentário sobre a vida animal da cadeia de televisão BBC que juntou
realizadores e cientistas.
O programa chama-se Animals with Cameras e quis mostrar uma
perspectiva única do mundo de vários animais, “quase” pelos seus olhos.
Colocaram câmaras, como chapéus, no topo da cabeça de chitas na Namíbia,
pequenos dispositivos nas costas de pinguins na Argentina e introduziram as
suas câmaras no equipamento subaquático desenvolvido por portugueses e rebocado
por tubarões e raias dos Açores para obter imagens únicas.
“É uma espécie de torpedo e pode pesar entre 800 gramas e
dois quilos, sempre com flutuabilidade positiva, o que significa que vai sempre
acima do animal e é rebocado, dependendo do tamanho do animal e do tipo de
filmagem que se pretende”, explica Tiago Rebelo apontando para o modelo que
está em cima de uma mesa na sala que reúne dezenas de engenheiros a trabalhar
num espaço aberto do edifício que desenharam em Matosinhos. O tal “torpedo” em
exibição, que quase parece imitar o desenho de uma miniatura de um tubarão que
engoliu uma câmara, tem algumas marcas de “guerra”. “Este foi o que foi mordido
por outro tubarão que, por alguma razão, implicou com isto”, explica o
coordenador da equipa do centro de engenharia aeronáutica.
Os sinais de agressão no equipamento provam que os animais
notam a sua presença, mas Tiago Rebelo assegura que uma das prioridades do
projecto é precisamente não causar qualquer tipo de desconforto ao animal.
Assim, a colocação do dispositivo é feita através de um cabo à volta do dorso com
isolamento que impede o mínimo arranhão na pele e que depois se estende para
longe do seu corpo, como uma antena, com a câmara na ponta, a reboque.
No caso da jamanta é exigido um mergulhador dentro de água
para enlaçar o animal. No caso do tubarão, a colocação do dispositivo faz-se
usando um isco que o chama para junto da borda do barco, para depois procurar o
sucesso na pontaria fazendo com que entre no meio do arco do cabo. “Nas imagens
parece mais ou menos fácil mas foi preciso fazer algumas tentativas até
conseguirmos”, lembra Jorge Fontes, biólogo marinho do Imar que acompanhou a
produção televisiva. O biólogo, que vai continuar a usar estas câmaras e nota
que, apesar de existirem outros dispositivos para filmar estes animais, o
equipamento do CeiiA tem várias inovações como o facto de não ser invasivo, ser
rebocado e ser reutilizável. “Além disso, as imagens obtidas são óptimas”,
refere, adiantando que o método foi validado com a publicação de um artigo numa
revista internacional que conclui que não foi registada qualquer reacção
adversa no comportamento dos animais.
Segundo Tiago Rebelo, para já, existem três modelos
diferentes destes equipamentos. Um mais pequeno que não tem uma câmara
incorporada e serve “apenas” para monitorizar o comportamento do animal, um
médio com câmara, e outro um pouco maior (com dois focos de luz) que é usado
quando se pretende imagens do escuro fundo do mar que estes animais vão
visitando ao longo do seu dia-a-dia. “O desafio da BBC acelerou a introdução de
câmaras neste equipamento”, explica Tiago Rebelo, que reforça: “Nunca tinha
sido feito isto de forma não invasiva, sem que fosse preciso estar um robô
dentro de água, espetar ou prender um equipamento na barbatana do animal ou
colocar outra coisa no ecossistema. Permitiu imagens nunca antes vistas.”
Os “extraordinários mergulhos” das jamantas
Jorge Fontes confirma que a “intensa e gratificante”
experiência trouxe ainda alguns dados importantes para o estudo destes animais.
“Percebemos, por exemplo, que as jamantas – que normalmente associamos a águas
quentes, abertas e junto à superfície – conseguem dar mergulhos
extraordinários, chegando a 1800 metros de profundidade, com uma imensa pressão
e com temperaturas de quatro graus Celsius”, conta.
O projecto com a BBC envolveu cerca de três semanas de
filmagens numa colaboração entre a equipa da cadeia de televisão e os
cientistas do Imar e do CeiiA. No entanto, estes dispositivos vão continuar a
ser usados pelo Imar nas várias campanhas científicas que realizam em várias
alturas do ano. Aliás, a colaboração com os investigadores dos Açores já vem
desde 2015 e começou com o Medusa Deep Sea, um robô submarino para exploração
do fundo do mar desenvolvido, entre outros, pelo Instituto Superior Técnico, e
que tem cerca de três metros de comprimento e 300 quilos. Um grande intruso,
portanto.
Além de pouco invasivas, os três “torpedos” tem várias
coisas em comum e uma delas é o facto de se “soltarem” dos animais, sem que
seja preciso qualquer intervenção humana. Isto é conseguido com sensores que
são colocados no cabo que está em volta do dorso do animal e também no cabo
suspenso que segura a câmara. Depois de um período pré-programado (os
cientistas definem qual o tempo que precisam), o cabo parte-se e a câmara vem à
superfície.
As câmaras foram concebidas e testadas para funcionar até 24 horas seguidas, mas, segundo Tiago Rebelo, será possível criar as condições para que filmem durante vários dias ou semanas. Uma vez posicionado, o equipamento regista nos seus sensores dados em tempo real sobre a profundidade, a localização, a velocidade e temperatura. O posicionamento do equipamento que fica distante do corpo do animal permite também uma visão com alguma amplitude e visualizar, por exemplo, o fundo marinho.
Melhorar a luz e a cor
Apesar do sucesso destas experiências feitas em colaboração com a BBC e que acabaram por acelerar este projecto fazendo com que os dispositivos pensados para o Imar fossem estreados num documentário de televisão, ainda há espaço para melhorias. Talvez se deva mudar a cor do torpedo, sugere Tiago Rebelo, recordando o “ataque” de um tubarão numa das filmagens. Por outro lado, as filmagens a maior profundidade também podem ser melhoradas com outro tipo de luz menos intrusiva (talvez amarela ou intermitente) para os animais que, em algumas ocasiões, terão manifestado algumas alterações de comportamento quando os focos iluminaram o que naturalmente é escuro como breu.
Além dos três modelos já concebidos e a funcionar, a equipa
de engenheiros do CeiiA vai agora construir mais três modelos para o Imar e
estão também a tentar desenvolver as suas próprias câmaras para conseguir ter
um “produto” no mercado. “Os dados recolhidos têm sido de uma qualidade
extrema”, confirma o investigador. E, para chegar até aqui, foi preciso
encontrar respostas para complexos problemas de engenharia que tinham de ter em
conta as diferenças no comportamento dos animais. Por exemplo: a que distância
deve ser colocado o dispositivo para um animal de tamanho X que se movimenta a
uma velocidade Y?
No futuro, querem ter soluções para oferecer para os
investigadores que queiram vigiar várias espécies. “O tamanho é uma limitação,
não podem ser muito pequenos. Tudo o que seja do atum para cima deve ser
possível”, refere Tiago Rebelo. Depois cada animal oferece o seu desafio, se o
atum é rápido e difícil de “laçar”, os saltos de um golfinho podem ser uma
ameaça à integridade do equipamento.
No entanto, o projecto com tubarões e jamantas mostrou que o resultado, obviamente, compensa o esforço. “No documentário da BBC conseguiram obter imagens que eles dizem estar lindíssimas da cria de uma raia a dar pontapés o ventre da mãe. E foi a primeira vez que conseguiram ver isto a 1500 metros de profundidade. Foi algo único”. Único e, provavelmente, só possível de ver quando estamos lado a lado com estes animais num mergulho profundo.
Fonte: Público
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