sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Tubarão-galha-branca-oceânico pescado sem trégua


Quando o documentário Morte Branca em Água Azul estreou nos cinemas, em 1971, as imagens de tubarões-brancos investindo contra as gaiolas dos mergulhadores tiveram um impacto estrondoso. Mas, hoje, a parte que mais se destaca é a cena dos galha-branca-oceânicos destroçando uma carcaça de baleia no litoral da África do Sul.
As imagens são impressionantes por dois motivos: primeiro, porque os mergulhadores abandonam a segurança das gaiolas na primeira vez em que alguém arriscava essa técnica de filmagem em meio a tubarões ocupados em alimentar-se. E, depois, por ser uma cena que, talvez, jamais pudesse ser reproduzida. “Nem dava para contar de tantos que eram”, comenta Valerie Taylor, que fazia parte da equipa. “E isso nunca mais vai acontecer de novo – não nesta geração. Talvez noutra, mas duvido muito.”
Houve uma época em que se achava que os galha-branca-oceânicos estavam entre as mais numerosas espécies de tubarões pelágicos (que vivem em mar aberto) do planeta. Um conceituado livro publicado em 1969, The Natural History of Sharks, chegava até a dizer, a respeito dos galha-branca, que eram “possivelmente o mais abundante animal de grande porte – ou seja, aqueles pesando mais de 45 quilos – na face da Terra”. Antes conhecidos por assediar naufrágios e barcos de pesca, agora estão quase desaparecidos devido à pesca comercial e à demanda por barbatanas – os galha-branca, ao mesmo tempo, foram objecto de raros estudos científicos e receberam ainda menos atenção das pessoas em geral. “Em termos globais, aniquilamos por completo a espécie”, afirma Demian Chapman, um dos poucos cientistas especializados nesses tubarões. “E, no entanto, quando menciono ‘galha-branca-oceânico’, muita gente não tem a menor ideia do peixe a que estou me referindo.”

Se assistiu ao filme Tubarão, então sabe algo a respeito deles. É também provável que tenha sido a principal espécie que atormentou a tripulação do USS Indianapolis depois que esse navio americano foi afundado por um submarino japonês, no fim da Segunda Guerra Mundial – um episódio conhecido das gerações mais jovens pelo dramático monólogo do fictício capitão Quint, em Tubarão, relatando a sua experiência como sobrevivente do naufrágio. “Mil e cem homens foram ao mar, 316 conseguiram sobreviver. E os tubarões cuidaram dos restantes.”
Há, contudo, um problema no relato de Quint: ainda que os factos estejam mais ou menos correctos, a vivência da tripulação é apresentada de um modo equivocado. De uma coisa não há dúvida: dos quase 1 200 tripulantes a bordo do Indianapolis, cerca de 900 abandonaram o navio, e a maioria deles pereceu em meio a sofrimentos infernais nos cinco dias seguintes. Apenas 317 sobreviveram. Havia tubarões por ali – muitos, na verdade –, e eles realizaram ataques horrendos.

No entanto, quando se perguntou a Cleatus Lebow, de 92 anos – um texano de fala mansa e que estava no Indy –, o que havia sido mais difícil durante o tempo em que passou na água, ele respondeu, antes mesmo que eu concluísse a pergunta: “A sede. Eu faria qualquer coisa por um gole de agua”. E os tubarões? “Vez por outra dava para ver que nadavam ao redor, mas não incomodavam.” Outro sobrevivente, Lyle Umenhoffer, de 92 anos, contou que “tinha de ficar atento quando os tubarões se aproximavam e, se chegassem muito perto, era preciso afastá-los com pontapés. Mas não lembro de ter sentido medo deles – tinha outras preocupações”. (Umenhoffer faleceu pouco depois de conceder o seu depoimento.)
É preciso recordar que, no momento em que foram resgatados, os sobreviventes do Indy estavam dispersos por uma área superior a 250 quilómetros quadrados, e, por isso, as experiências de uns e outros foram muito variadas. E também cabe dizer aqui que talvez os mortos contassem outras histórias. Porém, nenhum dos homens com quem conversei numa reunião de sobreviventes no verão passado – 14 dos 31 tripulantes remanescentes estavam presentes – colocaria os tubarões no topo da sua lista de temores durante aquela provação. Tecnicamente, Quint tinha razão ao afirmar que os tubarões “cuidaram dos restantes” – ou seja, daqueles que não conseguiram sair da água –, mas a maioria desses homens morreu, na verdade, de outras causas: ferimentos, hipotermia, afogamento, desidratação e ingestão de água salgada. “Vi poucos serem mortos por tubarões”, conta o sobrevivente Dick Thelen, de 89 anos. Como lembrou um dos presentes à reunião, “Quint nem sequer menciona de passagem a sensação de sede”.
Contar direito essa história é importante, pois a descrição dos tubarões-galha-branca-oceânicos como sendo matadores vorazes – e, portanto, uma espécie passível de ser eliminada – pode ter acarretado consequências ruinosas. Em terra, já se sabe o que acontece quando são removidos os predadores dominantes: uma bagunça ecológica. (Na África, por exemplo, a redução nas populações de leões e leopardos levou a um aumento tanto de babuínos como dos parasitas que carregam nos intestinos, os quais, por sua vez, passaram a infectar mais os seres humanos.) Que efeito o sumiço quase total dos galha-branca tem naqueles ecossistemas oceânicos em que antes eram tão presentes? Não fazemos a menor ideia. Nada. Tão incipientes são as pesquisas já realizadas sobre a espécie que até mesmo a tentativa de entender como se deu o seu declínio – deixando de lado o modo como esse declínio afecta outras espécies – mais parece a tentativa de solucionar um quebra-cabeça sem que esteja disponível a maioria das peças. E, se atribuirmos erroneamente a esses tubarões o papel de vilão, provavelmente não vamos nos sentir muito motivados em encontrar essas peças ausentes. Se o naufrágio do Indianapolis ocorresse hoje, os sobreviventes quase certamente não seriam atormentados na água por bandos de galha-branca-oceânicos – e isso, na verdade, não seria uma boa notícia.
JACQUES COUSTEAU, O PIONEIRO do mergulho autónomo, certa vez referiu-se ao galha-branca como sendo “o mais perigoso dos tubarões”, mas mergulhadores acostumados a lidar com esses peixes tendem a adoptar uma opinião mais suave. Stan Waterman, outro membro da expedição do Morte Branca em Água Azul, conta que parte do que tornou excepcional o mergulho deles foi que lhes permitiu ver como os galha-branca se comportavam de facto – em contraste com o que imaginavam. “Foi uma aprendizagem”, conta, “pois não sabíamos bem o que ia acontecer assim que saíssemos das gaiolas de protecção.” E acabaram comprovando o relato feito pelos sobreviventes do Indianapolis: os galha-branca- oceânicos não temem se aproximar e tocarcom os focinhos, mas não é provável que ataquem – pelo menos nas ocasiões em que há abundância de outros alimentos na água. “Fomos examinados de perto centenas de vezes”, conta Valerie Taylor, “mas aí decidiam que não valíamos a pena e iam embora.”

Medindo de 2,5 a 4 metros quando adulto, o galha-branca-oceânico é, sem dúvida, grande o suficiente para ser perigoso, além de ser atrevido e persistente. As áreas de mar aberto são uma espécie de deserto ecológico, e os galha-branca são adaptados para gastar o mínimo de energia possível ao explorar o oceano, e o máximo de tempo necessário ao investigar os animais que encontram e que talvez sejam boas fontes de nutrientes. Por isso, deslizam pela água com as compridas barbatanas peitorais que mais parecem asas e, quando encontram um alimento em potencial – um náufrago, uma baleia morta, um cardume de atuns –, eles aproximam-se e fazem uma verificação completa. Se for a única opção alimentar ao redor, é um tubarão muito perigoso. Caso contrário, provavelmente vai ser o encontro mais assustador da sua vida. E só.
Na década de 1950, estudiosos de áreas de pesca no Golfo do México ficaram surpreendidos ao abrir estômago de mais que um exemplar do galha-branca e ali encontrar atuns pesando de 2,5 a 4,5 quilos.Noutra ocasião, esses investigadores avistaram, na superfície do mar, um grupo numeroso de tubarões nadando de boca aberta no meio de um cardume de atuns – eles não são velozes o bastante para perseguir os atuns de pequeno porte. “Não se notava nenhuma tentativa por parte dos tubarões de perseguir ou capturar algum peixe entre as centenas ali existentes”, relataram. “Os galha-branca ficavam apenas à espera e prontos para engolir os atuns que nadassem para dentro das suas bocas.”
A grande ironia é que os investigadores que registaram o espectáculo estavam ajudando a preparar o caminho para a extinção desses tubarões. “Eles foram para lá a fim de descobrir que tipo de pesca comercial poderia ser explorado em águas territoriais americanas”, comenta a ecologista marinha Júlia Baum, que comparou os dados da década de 1950 com os mais recentes a respeito da quantidade de atum pescadol. “E não sabiam se poderiam instalar áreas de pesca viáveis devido ao facto de haver tantos tubarões, devorando os atuns presos nos anzóis e ficando eles próprios presos nas linhas”, diz ela.
Os pescadores então apresentaram duas soluções: ou abater os tubarões a tiros, antes que chegassem aos atuns nos anzóis, ou lançar linhas de pescas separadas para os tubarões, cujas barbatanas, já então se davam conta, eram valiosas. E, juntas, essas duas forças – a brutal desconsideração pelos tubarões e a crescente demanda por sopa de barbatana na Ásia – acabaram nas últimas décadas por dizimar as populações de tubarões no planeta, e afectaram de modo grave os galha-branca-oceânicos. Tendo como base o seu levantamento, Júlia concluiu, em 2004, que as populações dos galha-branca haviam caído em até 99% no Golfo do México, e, embora o estudo tenha sido criticado, outros investigadores constataram declínio igualmente alarmante nos oceanos Atlântico e Pacífico.
Em 2010, ficou tão claro que os galha-branca oceânicos estavam ameaçados que as cinco principais organizações encarregadas da regulamentação da pesca de peixe-espada e atum proibiram que os barcos de pesca ficassem com os galha-branca capturados – até agora, essa foi a única espécie de tubarão a desfrutar de tal protecção. E, em 2013, a Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies Ameaçadas (Cites, na sigla em inglês) impôs restrições visando a redução do comércio legal de barbatanas.
O problema é que talvez essas medidas sejam pouco eficazes e tardias. Muitas populações de peixes com esqueleto ósseo podem se recuperar com rapidez após a pesca excessiva, pois procriam relativamente cedo durante o ciclo de vida e põem milhares de ovos de cada vez, ao passo que a maioria dos tubarões, que são peixes cartilaginosos, demora mais para alcançar a maturidade sexual e aí dar à luz pequenas ninhadas com intervalos de um ou dois anos. Por isso, os tubarões são muito vulneráveis. E, no caso do galha-branca-oceânico, “nem sequer sabemos se dão à luz a cada ano ou de dois em dois anos”, lembra o biólogo marinho Edd Brooks.
Brooks faz parte do grupo de cientistas que, desde 2010, vem implantando identificadores e estudando os galha-branca ao largo da Ilha Cat, nas Bahamas. “A ilha é o último lugar conhecido no planeta onde temos certeza de encontrá-los em quantidade considerável”, diz o cientista.
A Ilha Cat fica na beira da da plataforma continental, e isso permite que as águas profundas do Atlântico cheguem até o seu litoral, tornando esse lugar perfeito para encontrar peixes pelágicos de grande porte, como os marlins e os atuns. Cerca de uma década atrás, começaram a circular rumores de que os pescadores que trabalhavam perto da ilha estavam incomodados com os tubarões-galha-branca, os quais roubavam os peixes capturados. O fotógrafo Brian Skerry vislumbrou nisso uma oportunidade rara e contratou uma agência de mergulhadores para fazer fotos submarinas. O êxito fez com que realizassem mergulhos regulares ao largo da ilha. A história correu e os cientistas se mobilizaram.
“Esse era o projecto que sempre planeamos fazer”, diz a bióloga marinha Lucy Howey, “mas não achávamos que seria possível encontrá-los.” A equipe de Lucy, que inclui Edd Brooks e Demian Chapman, instalou localizadores por satélite em quase uma centena de galha-branca, o que lhes permitiu registar os padrões de deslocamentos e outros dados. Com isso, fizeram várias descobertas importantes: primeiro, embora percorram todas as regiões do Atlântico, os tubarões passam a maior parte do ano nas águas resguardadas das Bahamas, em que a pesca com espinhel foi proibida na década de 1990. Portanto, a existência de áreas protegidas talvez seja essencial para a recuperação da espécie.
Em segundo lugar, os galha-branca passam 93% da sua vida entre a superfície e a marca dos 100 metros de profundidade, o que sugere que a pesca comercial em seus primórdios, quando o atum e outros peixes eram abundantes nessa zona, deve ter tido um impacto desproporcional sobre os tubarões. A regulamentação da pesca nessa faixa pode contribuir para a conservação.
Todavia, a terceira constatação é preocupante: a população de galha-branca que frequenta as águas da Ilha Cat talvez seja minúscula, da ordem de apenas 300 indivíduos. Após cinco anos de identificação, a quantidade elevada de indivíduos recapturados sugere um número bem menor de tubarões do que se pensava no início.
Talvez existam populações relativamente robustas em outros locais. Tubarões-galha-branca são vistos com frequência no Mar Vermelho, ao redor das Ilhas Cayman e nas águas do Havaí. Porém, como nessas áreas o mais comum é o avistamento de indivíduos solitários ou de grupos bem restritos, não dá para propor nenhuma estimativa da quantidade total de tubarões.
De acordo com Lucy, a questão crucial é descobrir em quais locais as fêmeas costumam ter os filhotes. A quarta coisa descoberta por sua equipe é que muitos dos galha-branca que vivem ao largo da Ilha Cat são fêmeas grávidas. Mas não há nenhum indício de que dão à luz nessa região. “Nunca vimos filhotes recém-nascidos nas Bahamas”, diz a bióloga. “Se soubermos onde é que dão à luz, poderemos proteger essas áreas.”
NÃO DÁ para voltar no tempo, nem tão pouco resgatar a inocência perdida. Os mares relativamente intocáveis da década de 1950, tão repletos de peixes que os países temiam não conseguir aproveitar esses recursos do que esgotá-los, parecem, hoje, algo quase incompreensível. No entanto, Cuba, que se projecta como uma ponte entre o sul das Bahamas e o Golfo do México, talvez seja também uma ponte para uma época passada. O embargo comercial de mais de meio século imposto pelos Estados Unidos não só prejudicou o desenvolvimento económico: conteve também a exploração dos recursos naturais. Em consequência, as reservas marinhas ao largo da ilha estão entre as mais bem preservadas do planeta.
Neste exacto momento, as autoridades cubanas actuam para formular um plano visando a preservação dos tubarões. Nos últimos seis anos, cientistas do país vêm realizando levantamentos com base nos tubarões capturados por pescadores, chegando a conclusões que vão deixar satisfeitos os seus colegas no resto do mundo. No norte da ilha, na orla do vilarejo de Cojímar, pescadores estão capturando montes de tubarões. E a terceira espécie mais abundante em suas redes é a dos galha-branca-oceânicos. Quase sempre espécimes jovens, e até alguns filhotes.
Fonte: Viajeaqui

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