quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Golfinhos do Sado. Uma gota de esperança num mar de desaparecidos


Nos últimos dias nasceu um novo golfinho no Estuário do Sado, trazendo esperança aos técnicos que todos os meses vêem a população diminuir. O i acompanhou a acção de monitorização anterior ao nascimento do Sapal
Uma nuvem de preocupação paira sobre a equipa que vigia os golfinhos do Sado. Passa pouco das nove da manhã na Doca do Comércio e o calor atinge os 29 graus. Raquel Gaspar e Marina Sequeira, biólogas da Reserva Natural do Estuário do Sado, entram no semi-rígido vermelho para mais uma acção de controlo da população de roazes (Tursiops truncatus). Comparam os números e concluem que desde o início do ano há seis que estão desaparecidos. "Alguns podem ter-se juntado aos que vivem na costa, outros, como o Asa e o Arpão, eram já muito velhotes?", dizem, desvalorizando as ausências prolongadas. A população de golfinhos residentes em estuário é caso único em Portugal e raro na Europa.
Nos últimos anos o seu número estava até a aumentar. Em 2011, aliás, chegou quase às três dezenas, mas agora muitos são os que fogem. Hipóteses para explicar o mistério há algumas, mas nenhuma comprovada. Podem ter sido as análises para retirar as células dos golfinhos (biopsias) que os afugentaram? A possibilidade avançada pela empresa de observação de cetáceos Vertigem Azul é de imediato excluída pelas biólogas da reserva: "Foi de facto realizada uma biopsia ao Unicórnio, mas ele continua no grupo", conta Marina Sequeira. Serão os barcos de recreio que aos fins-de-semana atravessam o rio? É preciso aprofundar ainda mais o estudo sobre as condições de vida destes animais para conseguir respostas, mas a inquietação da equipa acabou por ser minimizada com o nascimento de uma cria após o almoço.
Com a maré vazia e o rio esbranquiçado de alforrecas, o barco afasta-se na direcção da Lisnave, acabando por rumar ao novo cais dos ferries de Tróia. Após meia hora de viagem, duas barbatanas emergem junto à Caldeira. Quando Raquel avisa a tripulação já é tarde: "Estavam ali, pareceu-me ver dois. Estão a subir o estuário e não iam em grupo, devem andar à procura de comida."
O barco segue na direcção indicada pela bióloga marinha, mas nem sinal dos golfinhos. Desta vez a experiência de vários anos falhou. Eles não estavam a subir o estuário, haviam ficado no sítio onde tinham sido avistados. É junto à Caldeira que, com a maré cada vez mais cheia, se começam a ver vários pares a emergir para respirar. Raquel identifica o primeiro: "Olha, lá está o Esquilo! É um macho que nasceu em 1996..." As repentinas aparições tornaram-se mais demoradas. Eram cada vez mais os golfinhos que rodeavam a embarcação. João Francisco, o vigilante que seguia ao leme com um chapéu branco da Santa Casa da Misericórdia e uns óculos de aviador, brinca: "Agora quase dá para apanhar à mão."
A expressão fazia mais sentido no fim dos anos 80, quando a população de roazes residentes era de cerca de 40 elementos. "Agora é mais difícil avistá-los e a tendência é para serem cada vez menos. Os últimos quatro a desaparecer juntam-se ao Asa e ao Bocage, que estão fora do estuário desde o ano passado", lamenta Pedro Narra, responsável pela Vertigem Azul, insistindo nas biopsias.
"No âmbito do plano para a salvaguarda e a monitorização da população residente de roazes do Instituto da Conservação da Natureza, estão a ser feitas biopsias para conhecer a genética e perceber o estado de saúde, mas não sabemos em que moldes isso está a ser feito", diz Pedro Narra, adiantando que o desaparecimento dos últimos quatro coincide com "o início desta recolha de amostras". Além da acção de biopsias, atribui as culpas ao aumento das embarcações que se deslocam para o Sado ao fim-de-semana "sem respeitar" o espaço dos roazes. Segundo este responsável, são cada vez mais as empresas não licenciadas que levam turistas a observar os golfinhos. Marina Sequeira garante que "neste momento não existem condições para uma fiscalização mais apertada" e alerta: "Se existem empresas ilegais, nós nunca as detectámos e por isso quem tiver conhecimento deve contactar--nos."

DOS HOLOFOTES AO DESAPARECIMENTO

Há 14 anos, o Asa protagonizou um dos mais impressionantes momentos televisivos até hoje ao sobrevoar em directo o estuário do Sado içado por um helicóptero da Força Aérea Portuguesa. Hoje - com alguma idade e sem dentes - ninguém sabe dele há mais de um ano. Raquel Gaspar, a bióloga que na altura interrompeu o descanso de uma gravidez de risco para ajudar o golfinho que estava preso num esteiro, admite agora que pode ter chegado a sua vez: "Não nos podemos esquecer de que também morrem..."
"Olha o Escuro ali. Ele é que pode saber onde está o Asa, eram grandes amigos, andavam sempre juntos", brinca, aligeirando aquilo que o responsável da Vertigem Azul diz ser uma anormalidade. "É normal haver casos de golfinhos que saem, vão ter com os costeiros e aparecem um ou dois anos depois, mas não me recordo de alguma vez terem desaparecido tantos em tão pouco tempo", remata.
Às onze horas, o barco continua parado e as biólogas já identificaram outras 14 barbatanas. Variando no formato e nas marcas, são elas que permitem distinguir Ligeiro, Mr. Hook, Raiz, Cavalito, Serrote, Topo Cortado, Azul, Vitória, Batalha, Pirata, Moisés, Ácala, Tripé e Bisnau. É nesta altura que João Francisco se lembra de transmitir um recado às biólogas: "Disseram-me que têm andado três golfinhos perto da praia do Meco, será que..." Raquel aproveita a deixa para repetir que o desaparecimento de golfinhos não é nada tão negativo como diz o responsável da empresa Vertigem Azul.
Enquanto Raquel vai registando mais presenças, Marina Sequeira confirma que existem cada vez mais barcos de recreio no estuário aos fins-de-semana: "Da última vez que cá estive fiquei aflita só de pensar como é que os golfinhos poderiam vir à superfície respirar... Não havia espaço." Para estes casos defende que tem de se apostar na sensibilização, algo que a reserva tem feito. "As pessoas acham piada, por exemplo, quando os golfinhos batem com a cauda na água porque estão habituadas a vê-los fazer isso nos delfinários, mas é um sinal de que querem ficar sozinhos", diz, esclarecendo que "as pessoas devem respeitar isso e afastar-se".
ESPERANÇA NO SADO Pouco antes da hora de almoço, os golfinhos reúnem-se todos e começam a saltar fora de água. "Há duas explicações: ou é uma brincadeira ou estão a chamar os outros por algum motivo", explica Raquel Gaspar, que já os conhece desde 1994. A julgar pelas suas palavras, a resposta para esta felicidade pode muito bem ter sido a nova cria, que se apresentou aos turistas logo após o almoço - o Sapal. O golfinho representa a esperança para um estuário com cada vez menos residentes.
Quando o barco regressou à Doca do Comércio, cerca das 12h30, não se avistava qualquer sinal de golfinhos, o costume. "Às vezes até brincamos entre nós, dizemos que eles também têm hora de almoço", diz Raquel.
Ao certo não se sabe há quantos anos vivem roazes no Sado, mas o registo mais antigo data de 1863 e dá conta de dois golfinhos. Na época foi o naturalista José Vicente Barboza du Bocage que presenciou o momento. Mais tarde, em 1890, foi capturado um roaz adulto no estuário, cujo esqueleto se encontra no Museu Zoológico da Universidade de Coimbra." As razões que actualmente estão a conduzir à diminuição do número de roazes no Sado poderão vir a ser conhecidas quando, no âmbito do plano de acção do Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade, forem feitas análises à água e um estudo mais aprofundado sobre a evolução das condições de vida no Estuário. Até que isso aconteça esperam-se notícias do Asa, da Esperança - e da sua cria Nortada -, do Guilhas, do Arpão e do Bocage.

Fonte: IOnline

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