segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Remadores solitários atravessam Oceanos

Enfiam-se sozinhos em pequenos barcos e atravessam oceanos a remar. Passam 100, 200 ou 300 dias no mar alto. E é assim que parecem encontrar o sentido da vida. São mais felizes aí do que na terra.


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Enfrentam tempestades, tubarões e ondas gigantescas. A remar. Sem motores nem velas Isolados do mundo, a dar aos braços, sem barcos de apoio.

Até hoje, 125 remadores solitários atravessaram oceanos, assegura a Ocean Rowing Society, uma organização internacional que se encarrega de oficializar e registar estas façanhas. Desse número, 13 são mulheres. O oceano Atlântico é o mais percorrido: já houve 114 a atravessá-lo. E alguns até o fizeram nos dois sentidos ou por mais do que uma vez. O Pacífico foi cruzado por 16 audazes e metade desses também cruzaram o Atlântico. Sete preferiram atravessar o Indico e quatro deles repetiram a proeza no Atlântico. Por outro lado, já se registaram 131 travessias solitárias falhadas. E seis remadores solitários perderam a vida ao tentar percorrer um oceano.


Neste momento, o britânico John Beeden está a meio do Oceano Pacífico. Partiu a 31 de maio, há 154 dias, de São Francisco, nos Estados Unidos. Pretende remar até à Austrália, uma travessia com cerca de 11.300 quilómetros. Que tipo de gente é esta? É gente desencantada com a vida convencional das cidades.
Veja-se o caso da britânica Roz Savage. Tinha um carro desportivo e levava uma vida materialista de yuppie que todos os dias vestia um fatinho a caminho do escritório. Mas sentia-se vazia, desiludida com a vida moderna, desanimada com a existência banal na grande metrópole. Certo dia lembrou-se de escrever duas versões do seu obituário: o primeiro descrevia o seu percurso se continuasse na vida que trilhava; o segundo relatava a vida que ela sonhava ter. Reparou que eram radicalmente diferentes. Deu por si a temer chegar ao fim dos seus dias e arrepender-se das coisas que não chegou a fazer. E teve uma epifania: decidiu largar tudo e perseguir o seu sonho. Ou melhor, e como a própria assume: decidiu parar de sonhar e começar a agir.


Roz Savage foi a primeira mulher a atravessar três oceanos a remar. Mais de 500 dias da sua vida foram passados a dar aos braços no alto mar. "Alguns vão pelo desafio físico. Outros são mais filosóficos e vão remar à procura de algumas respostas sobre a vida. Acredito que os remadores solitários, como eu, estão mais propensos a tender para este último grupo", diz a remadora. "Agora quando olho para trás, vejo que todos os enormes desafios que enfrentei ao longo do caminho, especialmente naquele primeiro oceano, o Atlântico, eram exactamente o que eu precisava para me fazer crescer como pessoa", acrescenta.
Roz Savage lutou contra ondas de seis metros, falta de sono, muita dúvida e alguma depressão. Mas sentiu-se muito mais feliz do que nos dias em que vestia o seu fato para ir para o escritório. O escritor francês Jean-Claude Guilbert sintetizou esta ideia no livro "De l'esprit d'aventure": "A renúncia voluntária ao conforto para preferir o risco pode trazer-nos, não o escondamos, muita satisfação".
Este "click" que se lhe deu também vai de encontro a uma teoria que o explorador Erling Kagge explanou no seu livro "Philosophy for polar explorers". O norueguês advoga que com o passar dos anos cada um de nós passa por esta transformação: na primeira metade da vida arrependemo-nos mais daquilo que fizemos; na segunda metade da vida arrependemo-nos muito mais daquilo que não chegamos a fazer.
Amyr Klink, pioneiro na travessia a remo do Atlântico sul, escreveu que o maior perigo que sentiu na sua aventura foi este: o de nunca começar a sua travessia. "Este foi o maior risco que corri: não partir". Em 1984, o brasileiro decidiu "ignorar as funestas previsões e os comentários sobre a minha insanidade mental" e remou da Namíbia, em África, até Salvador da Bahia, no Brasil. Foram cerca de 6500 quilómetros ao longo de 100 dias.

Uma imensa igreja oceânica
É claro que as motivações variam. "Existem uns que até nem gostam de remar", aponta o velejador português Ricardo Diniz, que frequentemente trabalha com remadores solitários ao dar-lhes apoio, via telefone satélite, a partir de terra. "O remo é a forma de eles expressarem aquilo que sentem naquele momento e que os leva a ir para ali", continua. Cita o exemplo de Sarah Outen, uma das maiores remadoras solitárias. "Ela perdeu o pai e a dor foi tão imensa que ela teve que deitar aquilo fora de alguma maneira: a sua travessia do oceano Índico foi esse reencontro com a paz e que a ajudou a aceitar que o pai se foi embora". "O mar absorve as emoções e as alterações de vida, os divórcios ou as mortes", continua o velejador, "e é um excelente companheiro porque nos dá tempo, espaço e silêncio". Como tal, "há muitas pessoas que estão um bocadinho perdidas, não sabem qual é o caminho e vão ali descobrir". O mar, assevera, dá-nos "aquele bem-estar que se sente quando às vezes vamos para uma igreja e ficamos ali em silêncio". "O mar", remata, "é essa imensa igreja oceânica".
Uma das perguntas que imediatamente qualquer pessoa coloca ao deparar-se com estes casos é a seguinte: e como é que bebem? A resposta é simples: levam um dessalinizador, um aparelho que transforma a água salgada em água doce e que na maior parte das vezes funciona a energia solar. Levam também uma quantidade razoável de água engarrafada para o caso da maquineta se avariar. O que comem? Comida liofilizada devidamente aquecida, muito chocolate, cereais e frutos secos.
Há uns que passam mesmo muito tempo a bordo, sozinhos, sem colocar um pé em terra. O registo do período mais dilatado é do turco Erden Eruç que passou 312 dias consecutivos isolado no seu barco no Pacífico. É considerado o mais experiente remador vivo. "Dizem que são precisos 21 dias para uma pessoa estabelecer novos hábitos. Eu senti que depois de cerca de duas semanas sozinho no mar, aquela vida se tornara na nova normalidade. O dia 101 não foi muito diferente do dia 100. Não senti falta do bombardeamento de distracções típicas da vida na cidade. Senti-me mais produtivo e curiosamente mais à vontade ali exposto à natureza", confessa-nos na entrevista que pode ser lida aqui.
Mylène Paquette, uma canadiana que recentemente remou sozinha do Canadá a França durante 129 dias, admite que em terra aborrece-se facilmente se estiver sozinha. "Mas nunca me senti entediada no oceano", revela. A remadora tinha noção que mais ninguém havia num raio de milhares de quilómetros "mas a minha equipa estava ao alcance de uma chamada de telefone". "Frequentemente sinto vontade de voltar a sentir-me sozinha como no mar e sei que um dia lá voltarei", admite.


"É um estado muito diferente daquela ideia de solidão com conotações negativas", esclarece Olly Hicks, um dos mais respeitados e destemidos remadores solitários. Com apenas 24 anos remou o Atlântico Norte em 124 dias e aí encontrou "uma satisfação total". Atravessar sozinho um oceano, assegura, "é uma actividade meditativa, dada à reflexão - e tudo isso salpicado com momentos de grande drama e medo".
As tempestades e ondas gigantescas são muitas vezes aquilo que mais amedronta. O oceano merece muito respeitinho. Aquele que se atreve a enfrentá-lo sozinho sabe que é forte a probabilidade de não conseguir evitar porções de mar caótico, céus zangados, ventanias pavorosas. Amyr Klink, no livro que relata a sua viagem, reproduz o que os seus olhos viram: "Ondas altas, altíssimas, vindas de todos os lados e que, ao se encontrarem, explodiam para cima. A superfície do mar totalmente desordenado estava branca. A espuma, subindo pela borla e passando pela janelinha, poupava-me daquele terrível e irreal cenário. Cercado de ondas que despencavam em estrondos, não tinha a certeza se estava realmente flutuando. Vales e montanhas de água em desesperada batalha, em louco movimento. Jamais imaginara algo parecido". Capítulos depois escreve que a dada altura o mar se assemelhava a "uma pedreira em febril actividade completamente cinza, com explosões sucessivas e britadeiras ensurdecedoras que não paravam".
Em dias de colossal tormenta, onde nem sequer se coloca a hipótese de pegar nos remos, o navegador não tem outra solução para além de se enfiar na sua cabine, fechar a porta, rezar aos céus e evitar, também, ser derrotado pela impaciência ou frustração de ali ficar fechado - o que pode acontecer durante dias ou semanas a fio. Os barcos têm um pequeno compartimento onde os remadores dormem. A cama até tem cintos de segurança por causa das oscilações permanentes. Essas cabines são estanques: se o barco virar, à partida, ali não entra água. E os barcos capotam com frequência. Mas são desenhados e projectados para voltarem à posição inicial sem grandes demoras.
"As situações mais assustadoras foram capotamentos no Pacífico e Índico. Eu estava dentro da cabine e à partida não teria problemas mas não é muito divertido estar num barco a girar em 360 graus", conta-nos Roz Savage. Foi num cenário idêntico que a tragédia esteve perto de acontecer a Mylène Paquette. A remadora encontrava-se fora da cabine a lançar uma âncora paraquedas (uma traquitana para evitar que o barco seja arrastado em sentido contrário durante fortes correntes) e, a dado momento, o barco quase virou. "Os meus pés ficaram pendurados no vazio, o barco foi dobrado, de pé sobre a onda, e senti o tempo suspender-se, como se parasse", descreve-nos a canadiana. "Nesse momento dei por mim a reflectir e a sentir uma paz interior, parece que já nem estava com medo".
Remar com a cabeça
O domínio do medo é um dos tópicos daquele que é o maior desafio de tudo isto: o estofo psicológico. Todos os remadores contactados pelo foram unânimes em considerar que nestas empreitadas é muito mais exigente o esforço mental do que o esforço físico. "O esforço físico limita-se a ser uma resposta às directrizes mentais", sustenta Mylène Paquette. "Se encontrarmos uma maneira de lidar com o desafio mental, o lado físico até é secundário. Houve muitas vezes que eu pensei que tinha atingido o meu limite emocional, psicológico e físico, mas na verdade não tinha outra escolha para além de continuar. Eu acredito que todos nós somos capazes fazer muito mais do que aquilo que pensamos - se estivermos mesmo dispostos a superar-nos quando pensamos em parar", confirma Roz Savage.
"Ao estar sozinho num barco frágil no meio de um oceano infinito apercebi-me da fragilidade e da minha insignificância perante a imponência da natureza", assinala Olly Hicks durante uma troca de emails. "Foi uma lição de estoicismo e paciência porque o vento sopra como ele deseja e as correntes movem-se para onde querem", refere ainda. "Eu só podia remar quando a natureza me permitia e nas outras alturas só me restava para ser paciente e optimista - caso contrário, enlouquecia".
Numa travessia oceânica a remo, o esforço mental é, portanto, muito mais crucial que o esforço físico. Amyr Klink resumiu esta ideia quando escreveu: "Eu não pretendia vencer corrente alguma com os braços mas sim com a cabeça".

Fonte: JN

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