quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Portugal país marítimo? "Os indicadores económicos não mostram isso"


Os portugueses dão muita importância ao mar, mas ficam-se pelo romantismo de uma linha azul no horizonte. A provocação da bióloga marinha Rita Sá deu o mote ao debate no programa "Da Capa à Contracapa", registado no final de Julho na Renascença, no programa semanal em parceria com a Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Emanuel Gonçalves, biólogo marinho e também administrador da Fundação Oceano Azul, proprietária do Oceanário de Lisboa, defendeu que os números não mostram Portugal como um país marítimo, que requer investimentos continuados e uma estratégia de longo prazo.
"Para sermos um país marítimo, temos que ter população de forma correspondente a fazer coisas no mar. Olhando para os indicadores de utilização de embarcações de recreio, perdemos para o norte da Europa onde o clima é muito pior. Falta acesso, cultura, para trazer as pessoas para o mar. Os indicadores sobre a bioeconomia ou economia dos recursos marítimos também não mostram investimento capaz de transformar a ciência em empresas produtivas para o sector", constata Emanuel Gonçalves que no passado esteve envolvido no grupo que preparou a Estratégia Nacional do Mar.
O que se perdeu então? Para o perito em Áreas Marinhas Protegidas, a Expo'98 marcou uma diferença significativa, juntando um conjunto de elementos dificilmente conciliáveis no tempo como a liderança governativa política, a capacidade financeira para investir e uma resposta da sociedade. "Houve clara vontade de trazer o Ano Internacional dos Oceanos para Portugal. Houve investimentos públicos necessários para transformar essa realidade em algo concreto. E aí a sociedades responde", argumenta Gonçalves na Renascença, que defende um alinhamento dos pontos de vista da governação, economia e social, sublinhando ainda assim a vantagem do tema não estar politizado.
Rita Sá concorda com o diagnóstico. "Falta estratégia, falta visão, falta vontade para que o mar seja algo que faça parte da vida de toda a gente de uma forma profunda. As estratégias ficam sobretudo no papel".
Pescar os pescadores para a conservação e a ciência para a política
A discussão em torno da sustentabilidade dos recursos pesqueiros tem sido marcada por divergências entre Estados, cientistas e comunidades piscatórias. Rita Sá assegura que tem sido tentado envolvimento dos pescadores na tomada de decisão na gestão de recursos da pesca. " É uma mudança de paradigma para que corresponsabiliza as pessoas pelas decisões", completa a activista da Associação Natureza Portugal que será uma das oradoras do encontro "O Futuro do Planeta" em Lisboa.
A bióloga considera que há compatibilidade possível entre a protecção de determinadas Áreas Marinhas e algumas actividades económicas desde que sejam mais controladas e monitorizadas, com envolvimento de comunidades.
Já para Emanuel Gonçalves, não foi possível ainda passar a mensagem de que o peixe e os pescadores são duas faces da mesma moeda. " Não vivem um sem o outro. Só consigo defender os pescadores se defender o peixe. Só consigo ter uma economia saudável baseada nos biorecursos se proteger o capital natural que existe no oceano", afirma o biólogo marinho.
Confrontado com as divergências entre as diversas partes com base em estudos apresentados como científicos, Emanuel Gonçalves considera que o problema está na incapacidade de admitir que esses pareceres são para seguir.
"Temos uma falta de incorporação da informação científica na tomada de decisão. Se assumirmos que os pareceres científicos são para levar a sério, as pessoas têm que ser consequentes com esses pareceres. Não podemos depois fingir que não existem esses pareceres ou fingir que as políticas contrariam esses pareceres. É uma questão cultural por ultrapassar", critica Emanuel Gonçalves que insiste na necessidade de criar conselhos científicos nas principais estruturas de decisão do país. " E os políticos devem tomar decisões de acordo com o seu entendimento que não se substitua aos cientistas na aferição da situação", insiste Gonçalves, ele próprio membro do Conselho Nacional de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável.
Não ter medo do mar, outra vez
Emanuel Gonçalves argumenta que o mundo vive em simultâneo uma emergência climática e uma crise de biodiversidade que requer a necessidade de escolhas políticas decisivas.
" Estamos a perder espécies que se estão a extinguir a uma escala sem precedentes e estamos a modificar a atmosfera do ponto de vista químico. As políticas de um país onde o oceano tem soluções para cada uma dessas crises têm que ser ajustadas a essa realidade. Se Portugal decidir optar pela exploração de hidrocarbonetos ou minerais no mar profundo, isso tem consequências. Essa escolha política tem consequências que nos afastam das soluções para estas duas crises", afirma Gonçalves que defende uma aposta num " cluster fortíssimo de biotecnologia, onde podemos ser lideres na exploração das soluções que o oceano nos traz" a par da recuperação de habitats costeiros que absorvem carbono, de uma aposta do sistema científico nacional capacitado para trazer inovação à economia".
O administrador da Fundação Oceano Azul afirma mesmo que " não é uma inevitabilidade que as pescas tenham de continuar a diminuir, que tenhamos que ver o sofrimento das comunidades costeiras, que os pescadores desapareçam e com eles a sua cultura. Será certamente uma inevitabilidade se continuarmos a não atacar esse problema com soluções concretas".
Emanuel Gonçalves reconhece que o mar português é grande, mas a sua dimensão não deve amedrontar políticos, empresas e cidadãos. Mas é preciso transferir a ciência para a economia do mar.
" As patentes que derivam da exploração dos recursos genéticos e outros marinhos têm retorno para um determinado país, empresa ou laboratório. É preciso mais formação mas também estratégia. Formámos um enorme número de doutorados em ciências do mar. O que estamos a fazer com esse capital humano que investimos? Não estamos a conseguir integrá-los no sistema produtivo e científico. Isto é trágico. Estamos a fornecer mão-de-obra qualificada para países concorrentes e outros com mais recursos por falta de capacidade e de estratégia para os integrar e transferir para sistema produtivo. Temos uma percentagem bastante significativa de artigos científicos em ciências do mar, mas temos uma das mais baixas taxas de patentes na OCDE", remata o biólogo marinho no debate sobre a relação entre os portugueses e o mar. 

Foto:DR

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