segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Atravessar os Oceanos para compreender o Mar



A Associação David Melgueiro quer realizar uma enorme expedição à volta do mundo.

As sardinhas fugiram, as praias estão a desaparecer, o Atlântico está a mudar. A Associação David Melgueiro, que reúne cientistas marinhos, oceanógrafos e investigadores ligados ao mar, tem veleiros a estudar a costa, mas quer montar uma expedição de volta ao mundo, com passagem pelo Ártico, para perceber as alterações climáticas. Este é o sonho de José Mesquita: entender o nosso pesadelo.
O termómetro assusta: 22,4 graus. A temperatura da água do mar junto ao forte do Bugio, que marca a passagem do Tejo para o Atlântico, está 3,4 graus mais elevada do que é costume nos primeiros dias de Julho. «Há dois dias estava a 24,6», escandaliza-se José Mesquita, comandante do Anixa, um dos quatro veleiros da Associação David Melgueiro. A instituição, baseada em Peniche, reúne oceanógrafos, investigadores, biólogos marinhos e técnicos associados ao estudo do que se passa nas nossas águas. Por estes dias, as embarcações andam a recolher dados para análise, a acompanhar trabalhos de investigação das universidades e a promover experiências de navegação real para alunos das escolas de pilotagem. E o que vão encontrando preocupa-os – o mar está a aquecer. «Para percebermos as consequências disto na costa portuguesa, precisamos de fazer um trabalho sistemático de análise», continua o skipper, antigo comandante da marinha mercante que também é mentor e presidente da associação. «O problema é que os meios estatais estão ocupados com missões de carácter obrigatório, como a análise de stocks de peixe, para poderem negociar com Bruxelas. Mas é preciso fazer mais. E nós querermos fazer mais.»
E COMO VÃO FAZÊ-LO? Bom, na prática querem atravessar quatro oceanos diferentes e estudar o impacte do aquecimento global em todo o sistema marítimo do planeta. «Pode parecer uma missão impossível, mas temos essa responsabilidade. O país tem a terceira maior Zona Económica Exclusiva da União Europeia [depois de França e Reino Unido] e a 11.ª maior do mundo. Não podemos continuar a estar ausentes da discussão sobre o que se passa nos oceanos.» A teoria de Mesquita é que este projecto colocaria os cientistas, primeiro, e os políticos, depois, na linha da frente do debate. E há uma série de entidades a dar-lhe razão: a Direcção-Geral de Política do Mar, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera, a Fundação para a Ciência e Tecnologia, o parlamento açoriano e algumas universidades do país (Porto, Aveiro, Politécnico de Leiria e Instituto Superior Técnico, em Lisboa), todos deram apoio institucional à expedição Mar Borealis, nome oficial do projecto.
O desafio agora é cumprir a rota de três navegadores emblemáticos: Vasco da Gama, Zheng He e David Melgueiro. O primeiro terço conhecemos dos livros de História: o caminho marítimo para a Índia, com partida de Lisboa, descida do Atlântico com passagem por Cabo Verde e pelo Brasil, e entrada no Índico pelo Cabo da Boa Esperança, até aportar em Calecute, em 1498. Depois repete-se a expedição de Zheng He, almirante chinês que no início do século xv cartografou toda a costa asiática, da Índia ao Japão, com passagem pelo Sudeste Asiático e pelas Filipinas. E finalmente a rota nunca confirmada de David Melgueiro, navegador portuense ao serviço da Armada holandesa, que se julga que, em 1660, tenha ido do Japão à Europa pelo Ártico, aproveitando o degelo do estreito de Bering, entre a Rússia e o Alasca (EUA). Não existem provas cabais de que tenha sucedido o empreendimento, mas os indícios são fortes. Já voltaremos a esta história.
A expedição Mar Borealis demorará mais de dois anos. São 526 dias em mar aberto e 260 em porto, com paragem em 43 cidades de 22 países. No total, serão 42 mil milhas. Existirá uma tripulação fixa de cinco elementos e 12 vagas rotativas para cientistas. E os objectivos estão definidos: estudar o decréscimo da camada de gelo marinho no verão ártico, perceber a acidificação e aquecimento dos oceanos, bem como o nível médio das águas, entender as mudanças nas correntes oceânicas e a ocorrência de fenómenos extremos em todo o globo. «É que tudo isto tem uma aplicação muito directa na nossa economia», diz Mesquita. E dá um exemplo: «A sardinha está a desaparecer da nossa costa e estão a encontrar-se grandes cardumes ao largo de França, onde antes não existiam. É preciso perceber se isto é uma mudança conjuntural ou estrutural. O que acontece no Ártico afeta-nos muito directamente.»
O primeiro passo é a construção do navio Um veleiro de trinta metros chamado Green Ocean – David Melgueiro. Cinco milhões de euros é o que a associação precisa para pôr o plano em marcha. Feitas as contas, a construção custa 2,5 milhões de euros. Mas o seu uso científico obriga à instalação de robôs, gruas, aparelhos electrónicos de primeira linha, o que significa outro milhão. E há 24 empresas com quem a Associação firmou acordos e estão dispostas a patrocinar materiais de construção e investigação, reduzindo os custos. De isolamentos de cortiça ao casco, das máquinas ao aço que o barco precisa. «Os privados estão prontos, mas precisamos de fundos estatais para arrancar.» O resto são gastos com a viagem – alimentação, combustível, taxas portuárias. «Pode parecer um número elevado, mas estou convencido que, até 2020, estaremos prontos para largar amarras. Porque isto não é só uma aventura. É um desígnio nacional.»
Hoje é dia para ouvir golfinhos e baleias. Sofia Esteves da Silva é aluna do Politécnico de Leiria, estuda Biologia Marinha e anda a investigar a presença de cetáceos nas águas portuguesas. É preciso esclarecer se as águas territoriais são ponto de passagem ou maternidade. Tem feito a maior parte destes trabalhos ao largo das Berlengas, já conseguiu apanhar orcas, golfinhos, e determinar que aquela reserva é maternidade de peixes. Agora é altura de ir para o Tejo, onde os golfinhos estão a regressar. «Para este trabalho, temos de desligar os motores e navegar à vela, e é por isso que estes barcos polivalentes são tão úteis ao nosso trabalho», diz a rapariga. O Anixa cala-se, ela mergulha o hidrofone na água, coloca os auscultadores e começa a gravar. Ninguém respira.
A bordo seguem também a bióloga Cristiana Gastão e o investigador do Centro de Recursos Marinhos e professor de Oceanografia do Instituto Politécnico de Leiria, Roberto Gamboa. Se Sofia precisava de silêncio, eles agora precisam de velocidade para fazer arrasto com filtros de plâncton e determinar a densidade nas águas junto ao Bugio. Marcam num caderno as coordenadas do início e do fim da captação, atiram dois cones de tecido para a água, aos quais estão presas uma espécie de garrafas. «Daqui poderemos determinar as espécies que têm hipóteses de se desenvolver, a quantidade de microplásticos poluentes e, se fizermos trabalho sistemático, as mudanças da cadeia alimentar», explica Cristiana.

A POLIVALÊNCIA DO ANIXA é uma das grandes vantagens do navio, e como este – atracado em Oeiras – a Associação tem mais três. Em Aveiro, Peniche e Algarve. Veleiros ao serviço de estudantes e investigadores, capazes de cumprir o que a frota científica da Armada não tem meios nem tempo para investigar. «Mas está a ver aqueles filmes catástrofe de Hollywood? Começam sempre com uma equipa de cientistas a notar uma alteração fundamental no planeta. É esse trabalho que nós precisamos de fazer agora», diz Roberto Gamboa.
Há dois anos que Portugal tem equipas de cientistas a estudar o Ártico e a Antártida, ao abrigo do Programa ProPolar da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Três desses investigadores integram a Comissão Científica da Associação David Melgueiro. «Aquelas equipas estão presas numa base, não têm a mobilidade nem os meios que a sua investigação merece», diz Mesquita. «E a plataforma científica que vamos construir não se esgota numa expedição, pode continuar a servir o estudo dos oceanos para as zonas polares.» É que, para atravessar aqueles mares, é necessária uma construção larga mas baixa, com casco de aço, equipamentos. A utilidade de um barco não se esgota numa missão.
As quatro embarcações actuais não servem apenas os cientistas, também prestam apoio a escolas de pilotagem. Em Oeiras, por exemplo, há um protocolo com a Escola Superior Náutica Infante D. Henrique, o estabelecimento civil que forma todos os comandantes, maquinistas e pilotos da Marinha Mercante. Numa manhã de Julho, o Anixa fez-se à barra do Tejo com três alunos da Escola e Mesquita entregou-lhes os comandos para a mão. Um seguia ao leme, outro tomava anotações, uma aluna ia lendo aparelhos. «Sabe, o facto de ter estado muitos anos na Marinha Mercante levou-me a construir um veleiro, sim, mas com toda a capacidade de navegação de um grande navio», diz José Mesquita. Foi ele mesmo o construtor da embarcação. Edificou-a no quintal de sua casa em Peniche, ao longo de anos.
O homem tem anos de mar, em todas as vertentes. Em 1972, fez os primeiros serviços como piloto, quatro campanhas de bacalhau. Com o 25 de Abril, mudou-se para a pesca na costa africana: Mauritânia, Namíbia e Angola. Em 1978, foi encarregado de ir buscar à Noruega o velhinho navio científico que está há 35 anos ao serviço do Instituto Português do Mar e da Atmosfera, e que está prestes a ser substituído por uma nova embarcação. Depois foi para a Marinha Mercante, chegou a diretor da lota de Peniche e, em 1988, o comissário europeu Cardoso e Cunha convidou-o para inspetor de pescas. Passou mais de vinte anos em Bruxelas, negociou acordos de pesca, criou legislação técnica, organizou planos de recuperação de espécies. «Não sou um fundamentalista da ecologia, longe disso, mas conheço o mar e sei que temos de perceber o que está a acontecer. Quanto mais tempo demorarmos, mais comprometemos o nosso futuro.»
Em 2008, uma expedição científica francesa pelo Ártico a bordo do navio Tara determinou grandes alterações na densidade de fitoplâncton no Ártico, algo que pode significar uma alteração de todo o ecossistema. Agora, o Green Ocean quer integrar esse estudo em várias disciplinas, seguindo a suposta rota de um dos mais desconhecidos navegadores portugueses, David Melgueiro, o portuense que terá embarcado em meados do século xvii para o Japão ao serviço da Armada holandesa. Em 1660, largou do porto de Tanegashima e dois anos depois chegou ao Porto. Sem passar pelo cabo da Boa Esperança. Isto é o que se sabe.
O NAVIO CHAMAVA-SE Pai Eterno e vinha em missão secreta. O relato existente pertence a um diplomata francês que se estabelecera na Invicta, La Madelène. Reuniu o relato de vários marinheiros e redigiu uma carta para Paris, onde afirmava que, pela primeira vez, um navegador tinha atravessado os mares do Norte. Que havia entrado no Ártico pelo estreito de Bering, que se refugiara no mar de Barents, que tinha avistado o arquipélago de Svalbard, que contornara Escócia e Irlanda para rumar à Holanda, primeiro, e a Leixões, depois. A Holanda nunca confirmou o feito. Nem o próprio Melgueiro. Há a teoria de que o segredo foi guardado para proteger uma nova rota das especiarias. E há quem diga que o Pai Eterno circundou as Tormentas sem ser notado e a travessia do gelo é mito. Estudos climatológicos apontam que aqueles foram anos quentes, de degelo acentuado. E não se sabe mais nada.
Atravessar hoje o Ártico é missão mais fácil, muito por culpa do aquecimento global. As estradas estão abertas, mas são águas pouco profundas, nunca servirão para as grandes embarcações. José Mesquita quer levar lá o Green Ocean, para perceber o que andam a conspirar os oceanos. «É no Ártico que se ouve o lamento do mar», diz. «Não é encostando o ouvido a um búzio.»





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