O que é que o fóssil português com 145 milhões de anos tem que ver com figuras mitológicas japonesas? A equipa de paleontólogos portugueses e espanhóis que apresenta este fóssil único conta como se lembrou dessa ligação, que remete para a chegada dos portugueses ao Japão no século XVI.
Entre
os milhares de exemplares de fósseis que José Joaquim dos Santos,
paleontólogo amador, carpinteiro de profissão em tempos, recolheu
durante mais de 20 anos, calcorreando a orla costeira da região
oeste, encontra-se o de uma tartaruga especial. Apanhou-o em 2011 na
praia do Porto do Barril, no concelho de Mafra, já na fronteira com
o concelho de Torres Vedras, e agora anunciou-se que esse fóssil de
145 milhões de anos é de uma espécie nova para a ciência.
Vivia
num ambiente fluvial, numa zona salpicada de canais serpenteando a
paisagem. Não muito longe dos domínios por onde andava,
dividindo-se ora pelos braços do rio ora pela terra, o Atlântico
Norte começava a formar-se e ia separando a Europa da América do
Norte. Ia assim nascendo entre a Europa e a América do Norte o
Atlântico Norte, que naqueles tempos do Jurássico Superior não era
a vastidão azul que agora temos.
Acontece
que com o início da abertura do Atlântico Norte formou-se na faixa
oeste da Península Ibérica, em águas pouco profundas, a bacia
Lusitânica. E era aí, na maior das bacias interiores daquela altura
em território actualmente português, uma faixa compreendida entre o
Norte de Aveiro e a península de Setúbal, que se aventurava a
tartaruga desta história puramente científica.
Tal
como outros fósseis encontrados nos sedimentos da bacia Lusitânica,
a nova tartaruga, cujo fóssil está na Sociedade
de História Natural de Torres Vedras (nas
suas colecções há lá outra de igual importância), vem enriquecer
o conhecimento sobre os animais que povoavam a Europa na altura da
sua separação da América do Norte. Neste caso, permite conhecer
melhor como eram os ecossistemas no Jurássico Superior – e não
só, como se verá adiante.
Apresentemo-la,
antes de mais. Chama-se, cientificamente falando,Hylaeochelys
kappa.
Media cerca de meio metro de comprimento e a sua carapaça
arredondada muito baixa permite dizer que era um animal capaz de
nadar. “Tinha hábitos mistos: nadava e andava em terra, como os
cágados. Mas não estava adaptada a nadar como as tartarugas
marinhas actuais”, explica o paleontólogo Bruno Camilo Silva,
director do Laboratório de Paleontologia e Paleoecologia da
Sociedade de História Natural (SHN) de Torres Vedras.
Através
dos seus restos, dois paleontólogos espanhóis, Adán Pérez García
e Francisco Ortega, também da SHN, puderam concluir que a nova
tartaruga de água doce pertence a um género (o Hylaeochelys)
que até agora era conhecido apenas na Grã-Bretanha. Já quanto à
espécie, os paleontólogos, que descrevem a tartaruga portuguesa num
artigo a publicar na revista Comptes
Rendus Palevol,
da Academia de Ciências francesa, consideram que é nova para a
ciência. Como mandam as regras, puderam baptizar a espécie.
Escolheram chamar-lhe kappa.
Agora
vem uma parte menos científica, onde realidade e ficção se cruzam,
misturando o nome da espécie da tartaruga com figuras mitológicas
japonesas e monges portugueses do século XVI no Japão. Na cultura
popular japonesa, os kappa são
seres que vivem em rios e lagos, geralmente maléficos, atacando
pessoas e animais, e de aspecto humanóide e atartarugado. Têm uma
cavidade no centro da cabeça, rodeada de pêlo, escamas no corpo e
carapaças nas costas.
Ainda
que se pense que a sua origem seja mais antiga, tornaram-se populares
no século XVII (ainda hoje se encontram estátutuas deles em
vários locais do Japão e livros e filmes), e considera-se que o seu
nome moderno está relacionado com a chegada dos monges portugueses
do século XVI àquele país. Os kappa terão
ido buscar o nome às vestimentas (capas) usadas pelos monges,
fazendo lembrar as carapaças das criaturas atartarugadas. Além
disso, os monges rapavam a cabeça no centro, o que se assemelhava à
cavidade representada na cabeça dos kappa.
“Combinando criaturas mitológicas ou do passado, tartarugas e
portugueses, achamos que o termo ‘kappa’
poderia ser uma boa referência para a nova tartaruga”, conta
Francisco Ortega, também da Universidade Nacional de Educação à
Distância, em Madrid.
Porquê
sempre em Torres Vedras?
Voltando à realidade mais científica, com os seus 145 milhões de anos, a tartaruga portuguesa é mais antiga, em cerca de cinco milhões de anos, do que a britânica, que já é do período geológico seguinte ao Jurássico Superior, o Cretácico Inferior. É daqui que resulta grande parte da importância deste achado.
Voltando à realidade mais científica, com os seus 145 milhões de anos, a tartaruga portuguesa é mais antiga, em cerca de cinco milhões de anos, do que a britânica, que já é do período geológico seguinte ao Jurássico Superior, o Cretácico Inferior. É daqui que resulta grande parte da importância deste achado.
O
início da abertura do Atlântico Norte começou a surgir, no
Jurássico Superior, uma barreira cada vez maior entre a Europa e a
América do Norte, que passaram assim a ter uma fauna diferente.
Nessa altura, na Europa, alguns grupos de tartarugas exclusivamente
europeias desapareceram. E durante o Cretácico ocorreu uma
transformação profunda das faunas de vertebrados, com a
substituição da maior parte dos grupos antigos e o aparecimento de
linhagens novas.
“Esta
tartaruga amplia a distribuição geográfica e temporal do grupo [o
géneroHylaeochelys],
o que nos permite voltar a analisar a sua história evolutiva e obter
algumas conclusões gerais sobre de onde vieram, como viviam, quando
e como – e às vezes porquê – alguns organismos desapareceram”,
explica Francisco Ortega.
“Um
dos nossos objectivos ao analisar as faunas do Jurássico Superior
português é entender como a abertura do Atlântico Norte ocorre e
como é a relação de organismos continentais dentro do território
europeu”, refere o paleontólogo espanhol, a quem cabe a
coordenação científica da SHN. “Temos visto que alguns grupos de
dinossauros, por exemplo os carnívoros, eram muito semelhantes em
ambos os lados do Atlântico durante o Jurássico Superior. Outros
tipos de organismos, entre os quais as tartarugas, mostram uma maior
regionalização. De alguma forma, as tartarugas estão a dizer-nos
que o contacto das faunas através do Atlântico não era tão
simples como mostra o estudo de alguns dinossauros e que a
biogeografia da região é um problema complexo e terá,
provavelmente, a sua solução na análise combinada de muitos grupos
de organismos”, refere ainda Francisco Ortega.
Protegida
na bacia Lusitânica, a história que a nova tartaruga conta é esta:
“As tartarugas cretácicas europeias não apresentavam até agora
parentes directos no Jurássico e, portanto, não se conhecia nenhum
género de tartarugas europeias que atravessasse esta fronteira
temporal. À luz deste achado, sabemos agora que pelo menos
o Hylaeochelys já
existia no Jurássico”, sublinha um comunicado da SHN.
“Tudo
parece indicar que alguns géneros de répteis jurássicos europeus
de água doce, como o Hylaeochelys (mas
também crocodilos), conseguiram sobreviver, alcançando o Cretácico
com menos dificuldade que os seus parentes marinhos. Alguns
ecossistemas continentais terão tido mais estabilidade do que os
ambientes costeiros, que se viram submetidos a importantes câmbios
no nível do mar no final do Jurássico, afectando drasticamente as
suas populações de répteis”, acrescenta o comunicado.
Há
ainda a sublinhar que a Hylaeochelys
kappa é
um membro primitivo do grupo a que pertence a maior parte das
tartarugas actuais (as criptodiras), que engloba quase todas as
tartarugas de água doce, as terrestres e as marinhas.
O
fóssil vem juntar-se ao de uma outra tartaruga, igualmente com cerca
de 145 milhões de anos, descoberto junto à foz do rio Alcabrichel,
perto de Torres Vedras. Também era de água doce. Também vivia nos
cursos de água sinuosos da bacia Lusitânica. Também tem o seu
fóssil nas colecções da SHN de Torres Vedras e serviu, tal como o
desta agora, de referência à descrição de um ser vivo até aí
desconhecido dos cientistas. A diferença é que esta outra
tartaruga, a Selenemys
lusitanica, é
não só de uma espécie nova mas ainda de um género novo. As duas
são as tartarugas de água doce mais antigas da Europa.
“E
por que é que é sempre em Torres Vedras?”, pergunta,
retoricamente, Francisco Ortega. “São as desgraças da ciência.
Provavelmente, porque somos os únicos a estudar tartarugas no
registo [fóssil] português e porque começámos pelas colecções
de Torres Vedras”, diz o paleontólogo, que co-orientou a tese de
doutoramento de Adán Pérez (também da Universidade Complutense de
Madrid) sobre as tartarugas mesozóicas (era compreendida entre os
251 milhões de anos e os 65 milhões) da Península Ibérica.
Há
muito para estudar pelos sete paleontólogos actualmente envolvidos
no Laboratório de Paleontologia e Paleoecologia da SHN. Entre
tartarugas, crocodilos, dinossauros, peixes ou plantas, a SHN tem uma
colecção de importância ibérica, com cerca de 12 mil exemplares,
ainda em fase de inventariação. A juntar aos dois mil exemplares
recolhidos em trabalhos de campo nos 15 anos de vida da SHN, a Câmara
Municipal de Torres Vedras adquiriu, em 2008, a colecção de cerca
de dez mil espécimes de fósseis da orla costeira da região oeste,
reunidos ao longo de mais de duas décadas, por José Joaquim dos
Santos (que se tornou funcionário da SHN).
“É
uma das colecções mais interessantes de vertebrados do Mesozóico
da Península Ibérica neste momento”, frisa Francisco Ortega.
A Selenemys
lusitanica e,
agora, a Hylaeochelys
kappa são
duas das suas estrelas.
Fonte: Público
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