É uma onda mais lenta e silenciosa do que aquela que se vê nas estradas, com os carros eléctricos, mas também está a nascer uma revolução nos mares e no transporte marítimo. Séculos depois, os navios voltam a usar a energia do vento rumo às emissões zero.
Foi o vento que nos levou a descobrir o Planeta, por mares nunca antes navegados. Agora, 500 anos depois, é ele que vai ajudar-nos a preservá-lo, usando a tecnologia como estrela polar. O fenómeno ainda é recente, mas já há 20 navios cargueiros no mundo a usar tecnologias assistidas pelo vento adaptadas a embarcações existentes.
O objectivo é ir mais além e fazer do vento a energia propulsora principal, uma vez que também a indústria marítima está obrigada a cumprir as metas do clima, fixadas no Acordo de Paris, que exigem a neutralidade carbónica até 2050.
O primeiro navio de carga à vela moderno feito de raíz, o Canopée, foi construído em 2022 e já começou a operar. Encomendado por uma companhia francesa e construído pela Neptune, a embarcação pioneira estava em meados de maio ancorada no Porto de Bordeaux e gozava de boa saúde, com as suas oito velas/asas de 30 metros de altura, após uma das várias viagens realizadas.
No Japão também há um graneleiro assistido pelo vento, nos EUA há procura por estas soluções e está em curso uma corrida para construir o primeiro navio porta-contentores movido a vento entre a Veer Voyage e a Windcoop.
Um pouco por todo o mundo os exemplos repetem-se. Mas ainda são literalmente uma gota no oceano, visto que existem mais de 60 mil navios cargueiros em circulação, que são responsáveis por cerca de 3% do total das emissões mundiais de dióxido de carbono, ou seja, mil milhões de toneladas de co2.
Reduzir as emissões para metade não basta
Apesar de a Organização Marítima Internacional (IMO) ter estabelecido em 2018 a meta de reduzir para metade as emissões de navios entre 2008 e 2050, a verdade é que as emissões do sector continuam a aumentar.
Por outro lado, o Climate Action Tracker calcula que reduzir para metade as emissões não é suficiente para manter o aquecimento global abaixo de 1,5℃. E, no entanto, o consenso científico diz que esse é o limite superior que podemos arriscar, se queremos evitar desastres naturais mais graves e frequentes.
A IMO deverá rever a sua estratégia em julho, com os especialistas a defenderem mais ambição, porque chegar às zero emissões de navios até 2050 é imperativo para manter o limite de 1,5℃ credível.
"Isso deixa-nos menos de 30 anos para limpar uma indústria cujos navios têm uma vida média de 25 anos. O prazo de 2050 esconde ainda que o nosso orçamento de carbono provavelmente acabará muito mais cedo, exigindo acções urgentes para todos os sectores, incluindo o transporte marítimo", considera Christiaan De Beukelaer, professor de Cultura e Clima, na Universidade de Melbourne e autor do livro Trade Winds: A Voyage to a Sustainable Future for Shipping.
Ocean bird: a nova esperança
Por isso mesmo, é enorme a expectativa em torno do conceito tecnológico por detrás do navio Oceanbird (pássaro do mar, em português). O navio encomendado pela companhia sueca Wallenius Marine assenta na propulsão eólica e, segundo os fabricantes, poderá cortar as emissões até 90%. A ambição é tão prometedora que a União Europeia também participa no projecto com um financiamento de 9 milhões de euros, através do fundo Horizon.
Em fase de construção, o cargueiro será equipado com seis velas inspiradas na aeronáutica que, na verdade, são mais asas do que velas, e terá capacidade para transportar mais de 7.000 carros, razão pela qual também a Volvo participa como parceira do projeto.
A embarcação terá cerca de 220 metros de comprimento, 40 metros de largura e 70 metros de altura acima da água. A nova promessa do transporte marítimo sustentável deverá começar a navegar em 2026 e foi desenvolvida por uma equipa sueca de I&D entre a Wallenius Marine, a KTH Royal Institute and Technology , a SSPA/RISE e apoiada pela autoridade sueca de transportes.
Segundo os promotores, cada vela numa embarcação RoRo existente pode reduzir o consumo de combustível do motor principal entre 7% a 10% em rotas oceânicas favoráveis. Isso significa uma poupança aproximada de 675.000 litros de diesel/ano, o que corresponde a cerca de 1920 toneladas de CO2 por ano.
O potencial da propulsão eólica e, em particular, para reduzir as emissões rumo à neutralidade carbónica parece estar demonstrado.
Para Christiaan De Beukelaer, a matemática é simples. "Se a propulsão eólica começar já a economizar combustíveis fósseis, o orçamento de carbono vai estender-se um pouco mais. Com isso ganha-se tempo para desenvolver combustíveis alternativos, que a maioria dos navios precisará até certo ponto. Ora, assim que estes combustíveis estiverem amplamente disponíveis, vamos precisar de uma quantidade cada vez menor, porque o vento pode fornecer entre 10% a 90% da energia que um navio precisa".
Concluindo, por muito conservadora que a indústria da navegação seja, esta onda está a crescer e deverão ser lançados muitos navios eólicos nos próximos anos. Por isso, aquele especialista entende que para as empresas de navegação, o maior risco agora não é fazer um investimento ousado - é não investir num futuro sustentável.
Quatro mitos à volta da navegação eólica
O académico Christiaan De Beukelaer desmonta o que considera serem "quatro mitos" ligados às objecções habitualmente levantadas à navegação por propulsão eólica:
Mito 1. Os navios eólicos são coisa do passado por um bom motivo.
Os navios movidos a energia eólica usam uma mistura de tecnologia nova e antiga para aproveitar o vento onde ele é mais comum, que é no mar. Isso reduz a necessidade de combustíveis fósseis e de novos combustíveis alternativos que exigirão investimento e espaço para novas infraestruturas terrestres, tanto para gerar eletricidade quanto para transformar essa energia em combustível. Mesmo que a pesquisa sobre navios de carga à vela tenha parado no final do século XIX, a engenharia, a ciência dos materiais, as corridas de iates e o design aeroespacial produziram grandes inovações que estão a ser usadas para navios de carga, atesta De Beukelaer.
Mito 2. O vento não é confiável, então os navios não chegarão a tempo.
O vento pode parecer inconstante quando se está na praia. Mas no mar, os ventos alísios que impulsionaram a globalização permaneceram estáveis. De facto, as rotas comerciais mais comuns ainda são bem servidas pelos ventos predominantes. A previsão do tempo também melhorou bastante. E o software de roteamento é melhor do que qualquer outro do século XIX para ajudar a encontrar o melhor curso. Embora o vento possa não ser tão previsível quanto um fluxo constante de óleo combustível pesado, os avanços tecnológicos eliminaram muita incerteza. Por outro lado, o vento é grátis e não é afectado pela flutuação dos preços do petróleo.
Mito 3. As velas não funcionam em todos os navios
É verdade que nem todos os tipos de navios funcionariam com velas, rotores ou pipas montados no convés. Isso pode ser devido ao tipo de navio, pois os maiores porta-contentores não acomodam facilmente velas, por exemplo. Também pode ser por causa de onde ou como as embarcações operam - as águas sem vento e os horários apertados dos ferrys representam desafios.
No entanto, o argumento não é generalizável.
Enquanto isso, a corrida entre a Veer Voyage e a Windcoop para construir o primeiro navio porta-contentores movido a vento continua. Então, talvez esses navios possam usar velas, afinal.
Mito 4. Se fosse tão bom, já teríamos feito.
A crise petrolífera da década de 70 aumentou o interesse pela propulsão eólica, nomeadamente com as conferências em Delft (1980) e Manila (1985), que prometiam esperança para este tipo de energia. Mas quando os preços do petróleo caíram, o interesse diminuiu. "A propulsão eólica continua um nicho do sector porque as companhias de navegação ainda não precisam de pagar os custos ambientais e sociais reais da queima de combustíveis fósseis. Mas é provável que um preço global do carbono seja aplicado em breve ao transporte marítimo internacional . Isso cria um incentivo financeiro para meios de propulsão não poluentes".
Artigo original do DN - Carla Aguiar.
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