sexta-feira, 25 de maio de 2018

Projecto global quer mapa completo dos oceanos


Geólogos fizeram o mapa de cadeias montanhosas, desertos e florestas. Astrónomos desbravaram o céu. Mas os oceanos do planeta continuam em grande parte inexplorados. Há quem diga que conhecemos melhor a Lua ou até mesmo Marte do que nosso próprio fundo do mar.
O terreno marinho desempenha um papel fundamental no ecossistema. Relevos e vales submersos determinam padrões climáticos e correntes marítimas; a topografia do oceano influencia a pesca, que alimenta milhões de pessoas; quilómetros de cabos subaquáticos ligam biliões de indivíduos à internet; montes submarinos oferecem protecção contra ameaças costeiras, como possíveis furacões ou tsunamis, e podem até dar pistas sobre a movimentação pré-histórica dos continentes ao sul do planeta.
Em 2017, uma equipa internacional formada por especialistas de diversas partes do mundo deu o pontapé inicial para elaborar um mapa completo de todos os oceanos, como parte do projecto sem fins lucrativos Gráfico Barométrico Geral dos Oceanos (Gebco, na sigla em inglês).
Enquanto os primeiros oceanógrafos se esforçavam para vasculhar o fundo dos oceanos de nó (1 milha náutica – 1,852 km – por hora) em nó, os avanços recentes na tecnologia sonar permitem que uma única embarcação forneça milhares de quilómetros quadrados de mapas de alta resolução durante uma única expedição.
Mas as tão esperadas descobertas subaquáticas não são apenas de interesse dos cartógrafos ou investigadores marinhos. Muito abaixo da superfície do oceano há um tesouro enterrado: metais preciosos, elementos de terras-raras, petróleo e diamantes – riquezas que até hoje são inacessíveis, inclusive para os exploradores mais obstinados.

Alguns ambientalistas temem que a criação do mapa permita às indústrias extrativas lucrar com esses recursos naturais, colocando em risco habitats marinhos e comunidades costeiras.

Um mapa batimétrico global – isto é, um levantamento completo do fundo do oceano - certamente oferecerá uma compreensão melhor do nosso Planeta Azul, mas também pode nos levar a um universo outrora reservado à ficção científica: robôs submarinos, vulcões subaquáticos, joias marinhas, corais com propriedades farmacêuticas, plumas de sedimentos tóxicos e empreendimentos oceânicos desprovidos de seres humanos ou embarcações.

A questão é: uma vez que o mapa estiver pronto, será que ele vai ser usado como uma ferramenta em prol da conservação e do gerenciamento responsável? Ou como um "mapa do tesouro", funcionando como um guia para exploração e extração?

Apenas 15% do oceano do planeta é mapeado. Basta acessar o Google Earth e dar um zoom no meio do Pacífico, por exemplo. Você vai encontrar uma representação do fundo do mar com base na barometria por satélite e derivada da gravidade: de baixa resolução, indirecta e muitas vezes imprecisa. Considerando que mapeamos o Sistema Solar e o genoma humano, é surpreendente que não haja nenhum levantamento do fundo do mar. Mas a razão é simples: os oceanos são vastos, profundos e praticamente impenetráveis – a água fica literalmente no caminho dos investigadores.

Durante séculos, mapear as profundezas do oceano significava enfrentar o alto mar, pendurar linhas de prumo na lateral do navio (para determinar a profundidade) e depois traçar as descobertas essenciais em mapas cartográficos. Os marinheiros transformaram os seus levantamentos em mapas já no século 16, mas naquela época não existiam padrões internacionais para terminologias ou escalas, o que significa que os primeiros mapas não eram apenas ferramentas rudimentares de navegação, mas também confusos e contraditórios.
Só a partir do virar do século 20, época marcada pelo crescente interesse no mundo natural, que um grupo de geógrafos se reuniu sob a liderança do príncipe Albert 1º, de Mónaco, para criar os primeiros gráficos internacionais do oceano - que, mais tarde, dariam origem ao Gebco. O príncipe estava fascinado pela relativamente nova ciência da oceanografia e encomendou quatro iates de pesquisa para explorar o Mediterrâneo.

Mais de 100 anos depois, o Gebco e a Nippon Foundation anunciaram formalmente o lançamento do Seabed 2030, projecto colaborativo que tem como objectivo mapear todo o fundo do mar até 2030. A ideia é usar dados recolhidos de embarcações ao redor do mundo - incluindo levantamentos das primeiras expedições.
Os navios modernos, como os usados na empreitada, são equipados actualmente com barometria multifeixe – sistema sonar que emite ondas sonoras em forma de leque sob o casco da embarcação. Cada feixe sonar mede o tempo que leva para um sinal atingir o fundo do mar e retornar à superfície, calculando assim a profundidade da água, que pode ser marcada como uma coordenada em uma matriz de dados barométricos.

"Os múltiplos feixes ampliam a área do mapa e nos oferecem uma cobertura maior", explica Vicki Ferrini, presidente do subcomite do Gebco para mapeamento submarino.

A maioria dos navios já conta com a tecnologia sonar para identificar obstáculos e navegar, mas as embarcações com multifeixes aumentam consideravelmente a área do fundo do mar que os pesquisadores podem rastrear.

"É como aparar a relva com um cortador motorizado em vez de usar um equipamento manual", compara Ferrini.
Parte do problema, no entanto, é que as "vias" marítimas são muito parecidas com as rodovias: certas rotas possuem tráfego intenso, enquanto outros sequer têm rotas. Ou seja, grandes extensões do oceano não contam com um fluxo regular de embarcações. Um navio que faz a rota Havaí – Japão, por exemplo, oferece dados valiosos sobre o trajecto, mas missões planeadas para águas mais remotas são igualmente importantes.

"Um levantamento barométrico feito com múltiplos feixes modernos vai muito além de apenas dirigir um navio ao redor do oceano", diz o contra-almirante Shepard Smith, Director do Escritório de Pesquisa Costeira da Administração Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOAA, em inglês), que contribui para o Seabed 2030.

"Os dados do sonar são valiosos, mas particularmente em áreas onde não temos nada."
"No Pacífico ou no Ártico, por exemplo, linhas de rastreamento individuais podem ser bastante úteis para entender melhor as áreas mal mapeadas", acrescenta.
O Gebco espera mitigar esse problema incentivando navios de carga, barcos de pesca e embarcações de lazer a participarem do projecto, transmitindo os seus dados em tempo real e transformando o mapa submarino efectivamente num crowdsourcing (conteúdo colaborativo, criado pelos usuários).

A organização também oferece uma espécie de "livro de receitas": um manual de referências técnicas sobre a construção de grades batimétricas, que pode ajudar os países em desenvolvimento a usar os conhecimentos compartilhados.

Os colaboradores também são convidados a sugerir nomes para vários elementos subaquáticos - colinas, cumes, recifes, caldeiras e valas, para citar alguns - enviando uma carta à Organização Hidrográfica Internacional, em Mónaco.

O mapa vigente está baseado no Data Center Oceanográfico Britânico, no Reino Unido. E pode ser acessado por meio de um aplicativo marítimo para o sistema operacional iOS.

"Todo mundo – de investigadores a formuladores de políticas públicas e o público em geral – pode acessar os dados actuais", observa Helen Snaith, líder do Centro Global do SeaBed 2030.

Talvez nenhuma expedição moderna revele a complexidade do mapeamento dos oceanos em águas profundas de forma mais impressionante que a busca pelo avião da Malaysian Airlines (MH370), desaparecido desde 2014. As investigações indicam que a aeronave, que seguia em direcção a Pequim, caiu numa área remota do Oceano Índico. A região era tão mal mapeada que as equipas de resgate tiveram que fazer um levantamento básico da área de busca antes de elaborar um mapa mais preciso com resolução suficiente para detectar os destroços.

E, na verdade, a região era profunda demais para ser explorada com o mapeamento baseado em navios. Em águas mais rasas, rebocadores equipados com sonar são puxados por uma embarcação tripulada, mas a profundidade do Oceano Índico, o clima de monções e as fortes correntes marítimas tornam quase impossível a navegação de veículos rebocados. Então, em vez disso, os peritos enviaram uma frota de veículos subaquáticos autónomos (AUVs, na sigla em inglês).

Embora a robótica submarina ainda esteja a avançar, as pesquisas em águas profundas dependem cada vez mais de submarinos para vasculhar o leito marinho em busca de um mapeamento mais detalhado.

"Os AUVs apresentam muitas vantagens", diz James Bellingham, diretor do Instituto Woods Hole de Robótica Marinha, em Massachusetts, nos EUA.

"Eles são mais rápidos, fornecem inspecções do fundo do mar em alta resolução, incluindo avaliação de risco, reduzem os custos iniciais de capital e proporcionam maior acesso ao oceano", explica.
Um sistema barométrico de múltiplos-feixes apropriado custa muitos milhões de dólares e requer operadores treinados para classificar os dados, uma vez que os navios, por definição, flutuam na superfície do oceano – não abaixo dele.

Os AUVs, por outro lado, não são tão caros e são idealmente adequados para grandes extensões de águas remotas e abertas. Investigadores estão projectando actualmente novos modelos que podem ser lançados da terra e precisam ser alimentados apenas por baterias. É claro que esses activos também apresentam riscos: as baterias precisam ser recarregadas, os sistemas de navegação devem ser monitorizados a partir de navios próximos e um AUV avariado deve ser levado de volta ao porto para manutenção.

Segundo Bellingham, "no futuro, um veículo autónomo de superfície poderá rebocar veículos subaquáticos", eliminando assim os seres humanos de todos os aspectos do mapeamento no mar.

O Oceano Índico é conhecido, em sânscrito, como Ratnakara, que seria "mina de pedras preciosas". O nome é de facto profético: entre as montanhas e vales submarinos deste longínquo oceano estão escondidos grandes reservatórios de recursos naturais, incluindo ligas metálicas raras, petróleo, fontes hidrotermais e até diamantes. Esse tesouro subaquático já está no radar comercial - e um punhado de exploradores começou a fazer seus próprios mapas de alta resolução do fundo do mar.

Segundo Ferrini, essas informações podem ser valiosas para os pesquisadores. E as empresas petrolíferas, mineradoras e de análises sísmicas podem decidir partilhar dados reduzidos ou com resolução mais baixa para o mapa do Gebco, protegendo os seus interesses comerciais e acrescentando informações importantes ao projecto de 2030.

 Por exemplo, o grupo De Beers, corporação internacional especializada em mineração de diamantes, fechou uma parceria com o governo da Namíbia há mais de 20 anos para explorar diamantes ao longo da costa do país, rico em minerais. Recentemente, a companhia acrescentou à sua frota naval vários AUVs - parte de um sistema de perfuração e mineração que pode vasculhar a superfície do fundo do mar, soltar sedimentos profundos do leito marinho em busca de diamantes brutos e transportá-los por centenas de metros até a superfície.

Enquanto a mineração de ouro, estanho e diamantes em águas rasas é um empreendimento realizado há décadas, a mineração comercial em águas profundas é uma indústria nova. E o seu impacto ambiental ainda é desconhecido. Os cientistas prevêem, entre outras coisas, a degradação do habitat natural, com recuperação lenta e incerta, vazamento químico nos transportes e extinção de espécies.

Um porta-voz da De Beers afirmou, por sua vez, que a empresa "não faz mineração em áreas consideradas com alta diversidade de vida marinha".

"A recuperação do leito marinho (após a mineração) ocorre naturalmente durante um determinado tempo e é auxiliada pelo sedimento que nós devolvemos para o fundo do mar", acrescentou.
Ainda assim, os incentivos económicos do sector frequentemente superam as preocupações com segurança ambiental. Metais de terras raras encontrados em águas profundas são usados em tudo – de telefones celulares e DVDs a baterias recarregáveis, ímans, memória de computador e iluminação fluorescente. E, como as reservas terrestres de petróleo estão esgotando rapidamente, a exploração de poços em águas profundas torna-se uma perspectiva cada vez mais tentadora.
"É uma corrida", diz Bellingham.
"Uma corrida para se chegar a uma compreensão básica do nosso oceano, antes de alterá-lo dramaticamente. Já perdemos essa corrida no Ártico: a vida marinha que vivia no gelo não sobrevive mais", ressalta.
Além dos efeitos óbvios da mudança climática, parte das nossas águas também se tornou vítima da "urbanização oceânica": o fundo do mar está repleto de oleodutos, cabos submarinos de fibra óptica e espaços para aquicultura – o que sugere que estamos ansiosos para explorar as nossas águas antes mesmo de conhecê-las adequadamente.

Com ou sem mapa, as leis marítimas internacionais restringem actualmente a mineração em águas profundas a mais de 200 milhas da costa - distância a partir da qual os países não têm mais jurisdição sobre suas águas. A Convenção das Nações Unidas (ONU) sobre o Direito do Mar é o arcabouço jurídico que define os direitos e deveres dos Estados no uso e exploração dos oceanos.

O Artigo 76 da Convenção refere-se repetidamente à "plataforma continental", extensões de terra submersas que terminam nos "abismos" oceânicos. A lei estabelece que a vida marinha deve ser protegida e que a receita proveniente de qualquer empreendimento de mineração nesta região deve ser partilhada com a comunidade internacional.

O oceano profundo é o maior e menos compreendido habitat de vida animal e vegetal na Terra. Dois terços do nosso planeta correspondem a um paraíso marinho de beleza e mistério. São regiões caracterizadas pela alta pressão, baixas temperaturas e escuridão quase constante. Mas abrigam uma variedade de criaturas surpreendentes - o polvo-dumbo, a lula-vampira-do-inferno, o tubarão-fantasma, caranguejos-aranha, corais e enguias eléctricas - organismos fora do comum que apresentam adaptações evolutivas impressionantes.

Embora esses habitantes subaquáticos tenham mudado pouco desde a era dos dinossauros, eles não são muito resistentes. Demoram a se reproduzir e são altamente sensíveis a distúrbios.

Um atlas submarino internacional requer a cooperação de diferentes partes que têm objectivos distintos (e muitas vezes opostos): de autoridades do governo e oceanógrafos a operadores de submarinos militares, pescadores e mineradores offshore. Uma vez que as informações barométricas detalhadas forem divulgadas, medidas preventivas devem ser tomadas para proteger tanto o mapa quanto a paisagem que ele descreve.

"Um mapa de alta resolução é um investimento na gestão responsável do fundo do mar nos próximos séculos", diz o contra-almirante Smith.
De fato, a preservação dos oceanos depende de uma administração consciente - especialmente quando nos voltamos para suas profundezas em busca de recursos naturais que não conseguimos mais encontrar em terra.

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.

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