sexta-feira, 1 de abril de 2016

Mergulhador que andou nove horas à deriva no mar


Numa semana em que um acontecimento na Madeira espantou o país - uma turista atirou-se ao mar para apanhar o cruzeiro onde seguia o marido -, o Expresso recupera um acontecimento de outrora de quem teve de lutar contra a água - não porque se atirou, mas porque foi atraiçoado pelo acaso. Esta é a incrível história de sobrevivência do mergulhador Acácio Paulino, num testemunho relatado na primeira pessoa. Ele que teve de cantar e discutir consigo próprio para sair vivo do impossível. E que gastou as unhas dos pés (as barbatanas ficaram todas esfaceladas à frente) e ficou com a pele das pernas escamadas nas quase nove horas em que lutou contra o mar.

o consigo sair desta corrente! É humanamente impossível. Estou a ir para o largo. As ilhas estão cada vez mais longe. Já está a escurecer, vão parar as buscas, se é que estão à minha procura. À velocidade a que me estou a afastar nunca mais me vão encontrar. Vou-me embora para sempre. Nunca mais vou ver a minha mulher, os meus filhos, o meu netinho, a minha mãe não vai aguentar, vai morrer do coração. Que sofrimento para todos! Que medo! É este o meu fim!? Como é que isto aconteceu?!
Abortar mergulho! Abortar mergulho! O Vaz vai ter de esperar por outra altura para conhecer a gruta da pedra do Rabo do Asno. A água vem com muita força do lado norte da gruta e como afunila deste lado. Isto hoje aqui nos Farilhões não está para brincadeiras. Uau! Estamos a ser atirados para cima! Não estou a gostar nada disto: estivemos pouco tempo lá em baixo mas descemos até aos 32 metros de profundidade. A subir a esta velocidade ainda temos um acidente de descompressão e desmaiamos, que é o que acontece se o azoto se liberta em bolhas no organismo. Temos de voltar a descer até à profundidade da entrada da gruta, para os 27 metros. Quero lá saber da corrente! Com ela posso lutar.
Eu e o Vaz estamos bem agarrados um ao outro. O computador de mergulho diz para pararmos nos três metros mas não conseguimos, já chegámos à superfície e estamos longe da pedra - fomos arrastados pela corrente lateral. Aqui as vagas estão jeitosas. O Luís não nos consegue ver do barco. Devem ser umas três da tarde, descemos há cerca de meia hora, ele já percebeu que alguma coisa correu mal.

Esta corrente tem tanta força que parece o caudal de um rio durante as cheias. Vou de costas, mas assim consigo olhar para o Vaz, que vem de frente. Estamos a afastar-nos um do outro - como ele é mais corpulento é menos arrastado. Um «jerrican» vazio, deve estar preso a redes dos pescadores... não o consigo apanhar. «Vaz! Vaz! Está uma bóia ao teu lado direito, agarra-a e não a largues!!» Já não o vejo. Será que se agarrou?
Concentra-te: não posso fazer esforços porque a descompressão foi mal feita e tenho de me poupar para o caso de ter uma oportunidade de me safar; e não posso largar equipamento, porque quanto mais pesado estiver menos arrastado sou. Começámos a preparar este mergulho há uma semana, mas qual estratégia. É a impotência total! Já mal vejo as ilhas. A minha mulher já deve saber. Ainda ontem estive com o meu neto, o Francisco, um bebé. Filhos, Tiago, Miguel! Mãe! Nunca mais vos vou ver! Vou morrer!
Tenho que me preparar para passar aqui a noite. Se há buscas sei que vão parar quando anoitecer, é sempre assim. embora de noite pudesse fazer sinais de luzes a um helicóptero ou barco. Só que ninguém vai ver, vão abandonar-me aqui. Será que resisto? O fato é de sete milímetros, protege-me, nem tenho muito frio. Mas já bebi tanta água! Cada vez que sopro o apito ainda engulo mais. Se me vierem buscar depressa o pior que me acontece é ter um desarranjo intestinal. Estou em fraqueza, só comi meia sandes e bebi água. Estou a digerir toda a água salgada e como é tóxica aumenta a desidratação. O que li nos manuais de sobrevivência? O efeito dos sais faz adormecer e isso é o fim. Tenho de ir metendo os dedos à boca para ir vomitando esta água.

Sempre tão cuidadoso com a segurança, e, afinal, não me está a valer de nada. Venho cheio de material, carreguei três lanternas, afiei a faca, troquei a bússola. Que desespero! O que vou fazer? Espera aí: há uma ondulação diferente do lado direito? Parecem ondas. estáticas, que enrolam sem força. Isto só pode significar que há aqui uma contracorrente! É a oportunidade de eu sair desta corrente! Vou-me atirar para cima destas ondas. Ah, já não estou a ser arrastado. E agora?
Amigos que sabem do mar mais do que eu, se estivessem aqui o que fariam? Alberto Pais, meu monitor, Amadeu Cunha, que me emprestaste o fato para eu fazer o curso, Fernando Pina, que me assinaste a caderneta de mergulho, Tony Bessone, grande campeão, preciso da vossa força! E todos os outros, os que ainda cá estão e os que já se foram, ajudem-me! Se há um deus ou deuses, que me ajudem!
Não posso pensar mais na família! O pior que me pode acontecer é ter pena de alguém ou de mim próprio. Que raiva! Ó meu cobarde de m. tu que andas há 30 anos no mergulho, tu que és monitor, tu que tens salvo tanta gente, não vais fazer nada por ti?! Mexe-me esse cu, só tens 52 anos. É preciso bater-te? Tens os teus dois cães à espera para lhes dares comida! Estás por tua conta. Só me resta voltar a nado para as ilhas.
Vamos! Tenho de tomar medidas para nadar. Largo o cinto de chumbos, dispo o colete para nadar de frente, viro o equipamento ao contrário e faço dele uma prancha. Acendo uma luz porque se perco o equipamento nunca mais o encontro. E não posso apanhar outra vez aquela corrente. Vou cantar, fico mais acordado. Começo com Zeca Afonso. E vou contar anedotas.
O pôr-do-sol é lindíssimo. Se calhar é o último que vejo. Agora até me sinto bem, confortável. Estou tão cansado, acho que vou adormecer, que bom. Aliás, estou a dormir e a ter um pesadelo, vou acordar, se calhar com a cama toda alagada, mas bem, porque é impossível estar a passar por tudo isto. Não, não! Estou a perder a consciência. Vou-me afogar. É melhor tirar a máscara para levar com a água na cara. Respiro só pelo tubo. E mantenho os olhos abertos para me sentir o mais incomodado possível.
Já está noite, uma noite de Lua Nova perfeita, com tantas estrelas cadentes. As ilhas parecem uma massa negra de pedras. Não tenho profundidade de campo, não sei o que está a 500 metros ou a mil. Mas vejo o farol. Sei que é entre o Farilhão do farol e o Farilhão do Nordeste que há canais para uma enseada. Estou outra vez sonolento. Meto água no fato junto à cabeça, vou arrefecer mas é a maneira de acordar. Mas também posso manter o calor com a urina. Quem diria?! Sempre a fazer o pino para a urina sair e agora a aproveitá-la toda dentro do fato.
Três luzes a norte!? São barcos!? Já não vou para as ilhas... As luzes estão muito estáticas! Ai, não, são bóias iluminadas de redes. Tenho de chegar à tal enseada mais abrigada. Mas onde está a entrada? É tão diferente vir aqui de barco de dia. Isto é um labirinto de pedras grandes e pequenas. Que rebentação! Tive tanto trabalho e agora vou ser espetado contra uma pedra! Isto é tão escarpado, haverá algum sítio para subir? Devo estar a nadar há umas cinco horas. Vou apitar mais e gritar, o eco é enorme no meio destes pedregulhos. Se passar entre aquelas duas pedras entro no canal.
Ali no recorte da pedra do farol é uma luz!? Não, é a noite estrelada. Mas a luz mexe-se, está a incidir na escarpa. Não há dúvida nenhuma que é gente. Ouviram o apito! Ouviram o apito! Vou fazer outra vez sinal de morse, SOS, SOS. Olha um foco de luz sobre mim. Isto é tudo espuma. Será que me vêem?
Vão-se embora, só podem ir chamar ajuda! É só aguentar-me aqui a nadar entre estas duas pedras. Lá vêm novamente e também estão a fazer SOS. Não estou a sonhar! Despachem-se! Despachem-se! Já passou mais de hora e meia. Finalmente! A lancha do Instituto de Socorros a Náufragos.
As quase nove horas que andei à deriva no mar foram uma experiência tão violenta que não se apagou de um momento para o outro: daí ter tido uma espécie de alucinações, julgando, por exemplo, que ainda estava no mar quando já me encontrava no hospital, e ter levado semanas a recuperar a memória dos acontecimentos.
Nessa noite perdi mais de sete quilos, gastei as unhas dos pés (as barbatanas ficaram todas esfaceladas à frente) e a pele das pernas escamou toda. O meu amigo Vaz conseguiu agarrar a bóia que lhe indiquei e foi recolhido pelo Luís.
Vou voltar a mergulhar no mesmo local (onde já tinha mergulhado antes), não para afastar fantasmas, mas porque comparo este acidente a um acidente de viação, após o qual se volta a conduzir. O meu filho mais velho, o Tiago, de 27 anos, discorda. Ele mandou emoldurar o apito que me salvou e ofereceu-mo pelo Natal. Tinha comprado três apitos desses, por brincadeira, nos Estados Unidos, a uns cinco dólares cada, e só agora fiquei a saber que são utilizados por dezenas de departamentos de salvamento dos EUA e do Canadá. A minha mulher, a Ana, de 41 anos, compreende a grande importância que o mergulho tem para mim, até porque ela é também mergulhadora. Quanto à segurança, atenção à formação do mergulho amador. A rapidez com que alguns cursos são ministrados - meia dúzia de horas de piscina e alguns «on line» - não permite aos alunos adquirir os conhecimentos teóricos, e muito menos práticos, que possibilitem desenvolver uma estratégia de salvamento. Daí que muitas pessoas não utilizem lanternas seguras, apitos e até bússolas.
Quanto aos meios de socorro e de salvamento, a Marinha e a Força Aérea têm um grande mérito nas acções que permitem salvar tantas vidas no mar. Mas quando assistimos a um caso como o do «Luz do Sameiro», ocorrido recentemente perto da Nazaré, há que reconhecer que há muito a fazer. O meu caso é elucidativo de que a táctica das autoridades está errada: o socorro a náufragos não é só melhorado pela aquisição de meios; também terá que haver muito menos burocracia e mais rapidez nas decisões e nas intervenções.
Apenas uma lancha do ISN fez buscas durante pouco mais de uma hora, porque, como é habitual, as operações foram suspensas ao anoitecer. Às 21h20, mais de cinco horas após ter sido dado o alarme, a minha mulher contactou o Maritime Rescue Coordination Centre (organização internacional de que Portugal faz parte). Foi-lhe dito que havia uma fragata e um helicóptero, mas que a sua utilização ainda estava «sob consideração». Será tão difícil perceber que deixar um náufrago em águas tão frias e revoltas como as da nossa costa é uma autêntica condenação à morte? Os meios têm a obrigação e a capacidade tecnológica para actuar de dia e de noite, com chuva ou sol.
E, havendo pessoas numa ilha (os biólogos que ouviram o apito e avisaram para as Berlengas), não seria natural que fossem alertadas para a existência de um náufrago?
Também não faz sentido que num barco destinado ao resgate e salvamento de pessoas no mar não existam cobertores nem um «kit» de administração de oxigénio.
Com o meu próprio, já fiz 14 salvamentos no mar.
Fonte: Expresso





Sem comentários:

Enviar um comentário

Porto de Sines integra exercício de Cibersegurança em Singapura.

Sines foi um dos portos convidados pelo MPA – Maritimeand Port Authority of Singapore a participar num exercícioque congregou ainda os porto...